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A Comilança | Crítica

A comilança

16.08.2002, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H13

O Omelete recomenda: tome um engov antes e outro depois de cada sessão do italiano A comilança (La grande bouffe), que reestréia com cópia restaurada no Rio de Janeiro, exclusivamente no cine Odeon BR, depois de ter passado por São Paulo em 2001.

Como o nome já esclarece, trata-se de uma produção dedicada à gastronomia, dirigido em 1973 pelo saudoso cineasta milanês Marco Ferreri (1928-1997). No entanto, o clássico maior de Ferreri não se parece com filmes delicados como A festa de Babette (Babettes feast, de Gabriel Axel, 1987) ou Chocolate (Chocolat, de Lasse Hallström, 2000). Está mais para manifestos críticos e safados como seus contemporâneos Sweet movie (de Dusan Makavejev, 1974) e Saló (Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975), de Pier Paolo Pasolini (1922-1975).

Campeão da crítica no Festival de Cannes, A comilança apenas estreou no Brasil em 1979, depois de ser barrado pela censura. Na época, o tom corrosivo com que Ferreri tratava tipos e ideais burgueses, aliado às cenas de sexo e à linguagem chula, conferiram ao filme uma mística toda especial. Algumas pessoas, assustadas com a ousadia, simplesmente não entendiam por que um diretor gastava duas horas de película para exibir quatro marmanjos e seus maus-hábitos à mesa. Mas muitos visualizaram nele um grande exemplar da comédia italiana dos anos 70, com sua discussão das questões existenciais de uma sociedade decadente.

Na história, homens de meia-idade, senhores de respeito, quatro amigos decidem se enclausurar num casarão durante um fim-de-semana. Eles pretendem se matar de tanto comer - o que não é uma metáfora.

Marcello Mastroianni (1924-1996) vive um piloto de avião, orgulhoso de sua fama de garanhão. Michel (Michel Piccoli), um jornalista afetado, logo descobrirá uma tendência perigosa à flatulência. Ugo Tognazzi (1922-1990) faz um chef dividido entre pratos bem-confeitados e imitações perfeitas de Marlon Brando. E, finalmente, cabe ao juíz Philippe (Philippe Noiret) o papel de paspalhão da turma. Como não poderia faltar num banquete regado a escatologias, algumas mulheres servem de companhia para o grupo. A corpulenta Andréa (Andréa Ferréol) rouba a cena, com seus olhos brilhantes e sua gulodice.

Duas décadas e meia serviram para amenizar o impacto de A comilança. Hoje, cineastas como o austríaco Michael Haneke, de A Professora de piano (La Pianiste, 2001), causam repulsa e revolta com a maior das facilidades. Até mesmo qualquer besteirol norte-americano provoca constrangimento semelhante. A genialidade do filme de Ferreri reside no seu talento em transformar toda e qualquer cena absurda em momento de antologia, seja nos detalhes renascentistas do casarão, no cardápio cheio de massas e vinhos, ou na peculiaridade de cada uma das personagens. Aliás, as melhores comédias italianas da história invariavelmente reúnem um dos quatro atores principais.

Sabe aquelas comédias dramáticas feitas aos montes nos Estados Unidos, do tipo O amor é cego (Shallow Hal, de Bobby e Peter Farrelly, 2001)? Pois Marco Ferreri consegue aliar piadas e aspectos emotivos como ninguém. É fácil fazer rir. Difícil é esconder reflexões sobre os desejos e os medos humanos debaixo das gracinhas. Assista sossegado. Filmes como A comilança não envelhecem. Depois de bem mastigado e bem digerido, merece ser revisto várias vezes. Só não esqueça do antiácido.

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