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A Família Savage

Uma rara comédia dramática indie que não reproduz cacoetes do gênero apenas por hábito

27.03.2008, às 16H00.
Atualizada em 15.11.2016, ÀS 11H05

O crítico de cinema espanhol Miguel Marias coloca em dúvida o cinema minimalista que se tornou, particularmente nesses últimos e barulhentos anos, sinônimo de grande arte e antídoto contra a clipagem do mundo. Há muitos herdeiros da austeridade do francês Robert Bresson (1901-1999), defende ele, mas poucos legítimos e muitos bastardos.

Segundo Marias, nem toda falta de expressão deve ser entendida como anti-dramaticidade. As tais sobriedades dos personagens podem ser apenas inabilidade do diretor em extrair sentimentos dos seus elencos... Um filme sem tramas ou conflitos nem sempre é um filme sobre o vazio da vida - pode ser apenas um filme vazio. Há uma imagem recorrente em A Família Savage (The Savages) que leva a essa reflexão: por que diabos todo filme indie hollywoodiano tem alguém andando com a cabeça para fora da janela do carro como se isso fosse transcendental?

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Tudo bem, é um exagero: Laura Linney e Philip Seymour Hoffman são crescidos demais para ficar com os cabelos ao vento. Mas a diretora Tamara Jenkins filma-os tanto dentro do carro, muitas vezes com a cara colada no vidro, vendo a paisagem passar em constante plano e contraplano, que é inevitável perguntar: a mera transição de cenário é suficiente para nos sinalizar uma transição de fato na vida desses dois personagens? A sensação de movimento, de mudança, é verdadeira?

A Família Savage não é um road movie, ainda que pareça. No começo os irmãos Wendy e Jon estão cada um em seu canto, ela em Nova York sem saber se suas transas com um homem casado são compromisso de verdade e ele em Buffalo sofrendo porque sua namorada polonesa perdeu o visto e vai deixar os EUA. Wendy e Jon não deixam transparecer esses dilemas pessoais. Ela está tentando conseguir uma bolsa para custear sua peça de teatro e ele segue focado no livro que está escrevendo sobre Bertolt Brecht.

Wendy e Jon são finalmente chamados a questionar suas vidas íntimas porque o pai dos dois começou a escrever com cocô pelas paredes.

O indício de demência de Lenny Savage (Philip Bosco) não teria sido suficiente para tirar os dois filhos de suas rotinas, mas acontece que a namorada de Lenny em Sun City, no Arizona, acaba de morrer e o pai de Wendy e Jon de repente ficou sem teto. Os dois decidem lhe dar a atenção que o pai negara quando eles eram pequenos. Por sugestão de Jon, Lenny será levado a uma casa de repouso em Buffalo, e Wendy, sentindo-se culpada por largar o pai num asilo, acompanha o périplo. Sob a neve de dezembro em Buffalo os dois irmãos, com o pai a tiracolo, começam a lavar a roupa suja de uma vida inteira.

A Família Savage começa a provar que não é apenas mais um filme indie contemplativo, porque, a grosso modo, não foge da briga. Desde o começo somos apresentados a uma série de conflitos de opostos: o cinza da Costa Leste versus o sol do Arizona, o velho versus o novo, o artificialismo dos anti-depressivos versus a coragem de encarar a dor. Tamara Jenkins não verbaliza abertamente esses conflitos, mas os deixa sugeridos através da imagem. Esse laconismo na hora de expor temas, ademais, é uma das qualidades indiscutíveis do tal cinema minimalista.

Se a certa altura do filme - por volta da bendita hora das janelas do carro - as resoluções dos dramas passam a ser mais interiorizadas do que expostas, é uma escolha que a diretora faz, goste-se ou não. A clássica muleta "Seis meses depois..." aparece logo em seguida e dá margem aos críticos que enxergam nessas elipses forçadas um medo de encarar a dramaturgia de frente. O caso é que A Família Savage já expôs muito bem as suas idéias na primeira metade do filme, muito por conta das atuações de Hoffman e Linney (indicada ao Oscar), e até certo ponto isso basta para nos deixar viajando à janela até o fim da sessão.

Um detalhe não deve passar despercebido, porém, no final do filme. É quando Jon, lecionando na faculdade, começa a falar sobre Brecht - a cena corta justamente na hora em que uma aluna o perguntava sobre a divisão que o dramaturgo alemão faz entre ação e narrativa. Essa divisão não só é central à teoria do teatro moderno brechtiana como também ao cinema minimalista a que Tamara Jenkins, esbanjando interdisciplinaridade, se filia com A Família Savage. Exercer o drama compreendendo o drama faz toda a diferença.

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