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A Mulher sem Cabeça - Festival do Rio 2008

A cineasta argentina Lucrecia Martel monta um suspense ao seu estilo

08.10.2008, às 00H00.
Atualizada em 27.11.2016, ÀS 20H07

Verónica (María Onetto) surge em cena aos pedaços. Entre a câmera e a atriz há outras pessoas, amigas e familiares da personagem, e há objetos, atravessando o enquadramento. Um desses objetos é um carro, onde Verónica entra para voltar para casa. Ela dirige sozinha na estrada de terra, com a câmera da diretora de fotografia Bárbara Alvarez no banco do passageiro, fixa em close-up no perfil da atriz. De repente, Verónica atropela algo. Ela só pára o carro muitos metros além. Desce. A câmera continua no banco do passageiro, tentando segui-la. Começa a chover. Vemos Verónica através do vidro da frente, imagem que se dilui com os primeiros pingos. Nós só a vemos, pelo vidro do carro, do pescoço para baixo. Entra o crédito inicial: A Mulher sem Cabeça (La Mujer sin Cabeza, 2008).

Já dá para perceber, neste começo de suspense, o tipo de curto-circuito que a cineasta argentina Lucrecia Martel está propondo, ao utilizar um título de filme B de ficção científica para batizar uma história que não tem nada de sobrenatural. Verónica perde a cabeça, literalmente, com o enquadramento estilizado de Martel, e perde a cabeça, conotativamente, porque depois do incidente na estrada sua vida sai do eixo: ela acha que matou alguém e, perturbada, se torna uma estranha em casa e no trabalho. Passa-se um fim de semana inteiro sem que aquela chuva dê uma trégua. E de repente pára de chover.

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Como nos filmes de Martel as relações de família e de classe são o mais importante, o mal-estar vai além do acidente: a mãe da protagonista não se lembra que Verónica tem duas filhas, a sobrinha de Verónica espanta a família ao levar uma namorada para casa, a própria mulher sem cabeça trai o marido em uma noite incerta. A imagem de decadência de uma taça de vinho à beira da piscina imediatamente remete a outro filme de Martel, O Pântano, que também foi rodado em Salta, cidade natal da cineasta, e que também trata de uma classe média em mutação. Acontece que, aqui, essa mutação se dá como um flerte com o cinema de gênero, o suspense. O loiro hitchcockiano com que Verónica tingiu seu cabelo não é por acaso.

O curto-circuito que Martel propõe - o encontro do cinema de gênero com o cinema sem trama e de tênue causalidade - não tem sido recebido unanimemente e ainda vai render muita discussão. Porque o suspense clássico, de reviravoltas, exige que o filme nos forneça dados claros para digerir (ou mesmo antever) a resolução desse suspense. E a forma indireta como Martel solta informações trunca esse fluxo. Temos pequenos fatos que muitas vezes parecem desconectados do fio principal (como a simbólica piscina coberta pelo gramado). Aliás, como em O Pântano, um evento que normalmente só ganha destaque em jornal de bairro - no filme de 2001 era o fenômeno da imagem da santa, aqui, a enchente do canal - vai parar nas conversas de todos os personagens. São trivialidades assim, afinal, que debatemos na vida real, como quem fala da previsão do tempo com um estranho. Em A Mulher sem Cabeça, esses diálogos só adicionam ao mistério mais mistério.

A sobrenaturalidade da imagem

O que Martel nos dá para imergir de fato no suspense não está no texto, e sim na forma - e aí a cineasta demonstra não só domínio da linguagem como também sua insuspeita ambição para este terceiro longa-metragem. Duas fotos que ilustram este texto são bem representativas: Verónica na margem do enquadramento, olhando para fora do quadro (enquanto somos chamados a atentar para a menina na moto, à oposta direita), ou Verónica em primeiro-plano, em close-up, enquanto a ação transcorre ao fundo, no segundo-plano. São opções estéticas que marcam A Mulher sem Cabeça o tempo inteiro, sempre com a câmera mantendo uma distância média/curta da atriz María Onetto.

O que a diretora quer nos dizer com isso? Minha aposta: puxar a atriz pra frente e jogar a ação no segundo-plano é uma maneira de dizer que muito daquilo que se vê é construção da mente oxigenada de Verónica. Mas deixemos as adivinhações para outra hora.

Esse suspense sufocante que nasce não de uma situação sobrenatural, mas de uma sobrenaturalidade da imagem, é a grande sacada do filme. Momentos de genialidade: o cabelo estático de Verónica enquanto avança o vídeo na televisão ao fundo, o relampejo surreal que solta o choro da mulher e depois descobrimos ser mera obra de um soldador, e o uso do som do extracampo nas cenas do carrinho de fricção e da pá sendo arrastada. É um talento para o suspense à la Shyamalan que Lucrecia Martel exibe aqui, extrapolando as bordas do enquadramento. Junte-se a isso o estilo Um Corpo que Cai com que ela filma María Onetto por vidros sujos e espelhos esfumaçados, flertando com o irreal, e temos um filme poderoso. Complicado, mas indelével.

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