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Quem acompanhou de longe a falência da Enron pode encontrar no documentário Enron - Os mais espertos da sala (Enron: The smartest guys in the room, 2005) um bom passo-a-passo do caso. Quem já conhece todos os pormenores das fraudes contábeis, da valorização da companhia na Bolsa, das patifarias de distribuição de energia, ainda assim pode se estarrecer com o filme de Alex Gibney.
Muita gente entrou em contato com essa história toda apenas no segundo semestre de 2001, quando a então gigante de revenda de energia e gás, a maior dos Estados Unidos, degringolou em um processo que levou à sua bancarrota. O mundo ficou pasmado - nos anos 90 poucas empresas de capital aberto na Bolsa de Valores de Nova York tinham ações tão caras quanto as da Enron. Seu slogan era Ask Why, pergunte por quê, sugerindo que a companhia não temia ultrapassar barreiras, quebrar mitos. Acionistas investiam às cegas. Funcionários eram incentivados a aplicar suas poupanças em ações da casa. Acontece que ninguém questionava o porquê do sucesso da Enron.
O documentário vai à formação da companhia texana nos anos 80 e ao perfil dos envolvidos para entender como nasceu o que se tornaria uma ilusão de sucesso. O segredo estava na desregulamentação da indústria. Esse termo é usado pelos defensores do mercado como um mantra - significa que o Estado não interfirirá com normas e restrições no vale-tudo do livre-comércio. No caso da Califórnia, por exemplo, revendedores de energia, como a Enron, poderiam elevar o preço como quisessem, enquanto as distribuidoras, aquelas que lidam direto com o consumidor, sofriam o limite de tarifas imposto pelo governo estadual. O ápice desse desequilíbrio de regulamentação foi o famoso blecaute de 2001, mas disso falamos depois. O fato é que a Enron estava no lugar certo, na hora certa - não por acaso a Era de Ouro dos neoliberais.
Claro que um par de boas relações era necessário para lubrificar a engrenagem. Ken Lay, o fundador da Enron, tinha relações muito próximas do então presidente George Bush e seu filho, George Walker Bush, na época governador do Texas. O filme reserva algumas imagens de arquivo, extraídas de vídeos da própria companhia, para ilustrar a amizade promíscua. Acontece que o grande salto de Lay e seus executivos - os tais caras geniais, os mais espertos, promissores e ambiciosos na faculdade - não se deu com mamatas políticas, mas com brechas no próspero mercado de capitais estadunidense.
Existe uma coisa nebulosa nesse meio que se chama mark-to-market. A grosso modo, marcar a mercado significa considerar os ativos de uma empresa tão valorizados que é possível liquidá-los a qualquer momento pelo preço corrente do mercado. Traduzindo, pela matemática tortuosa de Jeff Skilling, diretor e grande pensador da falácia Enron: os operadores poderiam colocar o valor das ações da companhia lá no alto, sugerindo que no prazo futuro essas ações iriam mesmo se valorizar (afinal, a Enron não pára de crescer, diziam), sem ter que justificar a remarcação do preço. Em 28 de dezembro de 2000 o valor de cada ação chegou ao pico de 84,97 dólares - nos bastidores, porém, perdiam-se montanhas de dinheiro com projetos fracassados de internet, com usinas faraônicas na Índia que jamais operaram, com desvios de dinheiro pelos diretores...
O filme de Gibney trata tudo isso de forma didática. Não escapa do economês, mas consegue ilustrar o caso para os leigos. A base da pesquisa é sólida, inspira-se no livro homônimo dos jornalistas Bethany McLean e Peter Elkind. Os dois eram editores da Fortune Magazine quando pautaram uma entrevista com Skilling. Na época, a Enron era um mistério - disparava na bolsa, mas não conseguia explicar de onde tirava tantos lucros. Da revenda de energia? De investimentos em estrutura? Skilling ficou irado, resmungou, disse que a revista agia de má-fé. Mas como não soube explicar a fonte dourada da Enron, começou ali o processo que revelou as fraudes contábeis da companhia. Simplesmente quando alguém decidiu perguntar por quê.
A ambição, aqui, não é ter a abrangência de um A corporação, um dos melhores documentários do ano passado. A qualidade de Os mais espertos da sala é fazer o feijão-com-arroz sobre o assunto Enron, com alguns arrojos, como o trecho que explica o blecaute californiano. Trata-se do momento em que a fome dos operadores se tornou mais monstruosa. Para valorizar as tarifas de energia, alguns deles gatunamente mandaram desligar, por alguns minutos, uma ou duas fábricas geradoras no Estado, maneira de fazer o preço disparar em segundos - a manobra falhou e inflamou o problema da distribuição que resultaria na queda de força. Na edição, Gibney intercala conversas telefônicas entre os operadores, esculachando os californianos, com cenas de queimadas e caos nas ruas. Demoniza os documentados, sim, mas eles merecem.
Ano: 2005
País: EUA
Classificação: LIVRE
Duração: 109 min
Direção: Alex Gibney
Elenco: Peter Coyote, Arnold Schwarzenegger, Jay Leno, Bill Clinton