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A Noite Americana | Crítica

<i>A noite americana</i>

23.05.2003, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H14

A noite americana
La Nuit américaine
França, 1973 - 115min.
Arte/drama

Direção: François Truffaut
Roteiro: Jean-Louis Richard, Suzanne Schiffman


Elenco: Jacqueline Bisset, Valentina Cortese, Dani, Alexandra Stewart, Jean-Pierre Aumont, Jean Champion

François Truffaut (1932-1984) e Jean-Luc Godard são os dois nomes mais expressivos da Nouvelle Vague, escola francesa dos anos 60 e 70. Aliás, se não fosse a grande herança revolucionária deixada por Georges Méliès (1861-1938) e pelos irmãos Louis (1864-1948) e Auguste Lumière (1862-1954), os dois "jovens terríveis" seriam também os mais importantes cineastas da história da França.

Habitualmente, os filmes da dupla são relançados no Rio e em São Paulo pelo Grupo Estação. E a distribuidora teve uma inteligente sacada ao reexibir, há algumas semanas, O Desprezo (Le Mépris, 1963), de Godard, e agora A Noite Americana (La Nuit Américaine, 1973), de Truffaut. Explica-se. Ambos os filmes são metalingüísticos, tratam do próprio cinema e das engrenagens da indústria. E como a narrativa e a estética dos dois diretores são bem distintas, a comparação entre as duas obras ilustra de maneira única essas diferenças estilísticas.

Godard é experimentalista e provocador por excelência. Truffaut, um apaixonado incorrigível. E isso fica evidente nos dois trabalhos. Enquanto O Desprezo atirava em várias direções (exploração da imagem de Brigitte Bardot, da incomunicabilidade entre as pessoas, dos vícios de Hollywood, das analogias com mitos gregos), A Noite Americana reserva o humor irônico para alguns momentos isolados - e se ocupa, realmente, de prestar uma homenagem sincera ao cinema. O próprio título é um termo técnico: "noite americana" é o processo de filmar uma cena noturna em plena luz do dia.

A trama acontece em meio à rotina de gravações do romântico Apresentando Pamela, o filme dentro do filme, dirigido por um certo Ferrand (o próprio Truffaut). Assim, os obstáculos mais triviais de uma produção ganham o primeiro plano: atrasos de prazo, negociações com produtores, administração de egos do elenco, mudanças de última hora... Aos poucos, uma produção banal e de provável fracasso - a história de um jovem que perde a noiva para o pai - se transforma num grande épico nos bastidores, tamanho a número de problemas sofridos até a sua finalização.

Não é necessário ser um grande erudito para apreciar A Noite Americana, um filme direto, didático, transparente. Mas a compreensão das tiradas mais inspiradas pede um certo conhecimento de cinema. A melhor delas: uma atriz decadente, já baleada por algumas taças de vinho, não consegue decorar algumas linhas de texto; depois do terceiro ou quarto take, ela dispara "podemos fazer como Fellini, eu interpreto a cena falando números... treze, vinte e quatro, cinquenta". Bem a seu simpático modo, Truffaut satiriza assim a tradição da dublagem presente nos filmes italianos.

Nesse passo despretensioso, surgem personagens caricaturais e cativantes, como o contra-regra mulherengo, a deslumbrante estrela com ataques de choro, o veterano galã homossexual ou o jovem astro com problemas conjugais, cuja namorada continuísta foge com um dublê. E surgem também outras seqüências antológicas. Como aquela em que a equipe toda se empenha em fazer um simples gato beber leite num pires. Repare que, quando o felino rebelde finalmente obedece, o filme fictício e o filme real se confundem. Nós respeitamos a catarse daquela pequena "proeza", como se estivéssemos parados ao lado da cadeira do diretor no exato momento da filmagem.

Esse é o presente de Truffaut, o menino cinéfilo que se tornou um mestre: colocar o espectador no lugar do cineasta e cochichar aquilo que ele tem de mais íntimo, a sua paixão profissional.

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