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Há um humor em extinção. Trata-se daquela comédia física elegante, de gags paulatinas e inventivas, de pouco ou nenhum diálogo, mas que esconde em suas entrelinhas uma eloqüente visão crítica do mundo. É o humor de Monsieur Hulot, a criação mais célebre de um mestre do gênero, o francês Jacques Tati (1909-1982). Se esse tipo de riso caiu em desuso, talvez seja pelo fato dos dias grosseiros atuais não aceitarem mais aquela defesa desengonçada da ingenuidade, contra o consumismo e a modernização insípida do cotidiano.
Por outro lado, se um longa de animação quase mudo, como o francês revivalista As Bicicletas de Belleville (Les Triplettes de Belleville , 2003), consegue cativar o mundo e ser indicado ao Oscar da categoria, ainda há salvação para a humanidade.
Trata-se de uma obra escorada na tradição de Tati. Repare na trama: depois de treinar com apito em punho o seu neto ciclista para a famosa Tour De France , a velhinha Madame Souza o vê seqüestrado durante a corrida por mafiosos ítalo-americanos; atravessa, então, o oceano acompanhada por seu cachorro Bruno em um pedalinho, chega a Belleville, consegue o auxílio de idosas trigêmeas cantoras de cabaré e tenta libertar o ciclista escravizado numa arena clandestina de apostas.
Estreante em longas-metragens, o animador Sylvain Chomet põe em prática tudo o que aprendeu em quarenta anos de vida e duas décadas de devoção aos quadrinhos e aos desenhos. Assim, o visual já espanta, de cara, pela mistura impressionantemente harmoniosa entre o tradicionalismo artesanal e os artifícios tridimensionais.
A sua temática nostálgica também se evidencia logo na introdução: um número de cabaré típico dos anos 30 é desenhado com os mesmos traços em preto-e-branco dos clássicos da época. Fica igualmente latente a sátira aos norte-americanos gordos e comilões - idéia que Chomet já desenvolvia no seu curta anterior, La Vieille dame et les pigeons (1998) - e aos tipos consagrados de Hollywood, como os mafiosos e os seus capangas motorizados. Sobra até uma gozação com a chuva de sapos de Magnólia (de Paul Thomas Anderson, 1999).
E a animação não se limita a resgatar o tema clássico de Hulot, a aversão à selvageria industrial. Chomet faz questão de citar os trabalhos de Tati. No quarto das trigêmeas - as triplets do título original -, o pôster de As Férias do Monsieur Hulot (Les Vacances de M. Hulot , 1953) está pendurado na parede. Na cama, as irmãs se esbaldam de rir assistindo a Escola de Carteiros (LÉcole des facteurs, 1947), um dos melhores curtas do diretor. E a engenhoca que mantém ciclistas pedalando na arena de apostas foi evidentemente inspirada nas bicicletas adaptadas que ensinam os carteiros a pilotar no curta.
"Mas se sobram referências e curiosidades, o que faz da animação algo distinto?", você pode perguntar. Pois em nenhum momento as citações suplantam aquilo que Chomet tem de mais autoral: as situações originais, as piadas inventivas, o carinho pelos personagens, a técnica bem lapidada e a narrativa tensa. Além disso, o animador toma tão bem a apologia da simplicidade para si que torna As Bicicletas de Belleville singular.
Pode não salvar o humor ingênuo, mas ao menos alimentará muito bem os seus fãs.
Ano: 2003
País: França, Canadá
Classificação: 10 anos
Duração: 80 min
Direção: Sylvain Chomet
Roteiro: Sylvain Chomet
Elenco: Béatrice Bonifassi, Lina Boudreau, Michèle Caucheteux, Jean-Claude Donda, Mari-Lou Gauthier, Charles Linton, Suzy Falk