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Desmundo | Crítica

<i>Desmundo</i>

29.05.2003, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H14

Desmundo
Brasil, 2003
Português arcaico (com legendas)
Drama/época - 100min.

Direção: Alain Fresnot
Roteiro: Sabina Anzuategui, Alain Fresnot, Ana Miranda (livro)

Elenco: Simone Spoladore, Osmar Prado, Caco Ciocler, Berta Zemel, Beatriz Segall, José Eduardo, Debora Olivieri, Olayr Coan, Fábio Malavoglia, José Rubens Chachá, Cacá Rosset

Nada de Carlotas Joaquinas picarescas ou de Caramurus em divertidas orgias sexuais. O filme-de-época da vez não é dirigido por Guel Arraes. Enfim, com Desmundo (2002), produção e distribuição da gigante Columbia Pictures, o cinema nacional consegue espaço na grande mídia para exibir algumas verdades sobre a gênese do seu povo. A imundice das embarcações, a falta de caráter dos jesuítas, a selvageria dos bandeirantes e as várias formas da escravidão assumem a tela.

Não há lugar para globais em forma de coloridas índias, nem para galãs enfeitados como lusitanos assobiantes. O que importa aqui é o realismo com que ficamos conhecendo o estupro, a pilhagem, a invasão, o aliciamento, ou seja lá qual for o nome mais justo para o famoso "achamento" do Brasil.

A trama se concentra em Oribela (Simone Spoladore, corajosa), uma das inúmeras órfãs enviadas por Portugal às novas terras - uma maneira dos colonos estabelecerem família e da Igreja impedir que relações sexuais com índias e negras corrompam as linhagens portuguesas. Oribela, no entanto, se opõe. Quer apenas voltar para casa. Como castigo pela insurgência, recusada por todos, termina casada com o rude Francisco de Albuquerque (Osmar Prado, com uma barba aterrorizante e a competência de praxe). Em meio a uma rotina de abusos, incestos, brigas e tentativas de fuga, ela se desespera. Residem no comerciante Ximeno (Caco Ciocler), um liberal cristão-novo, as últimas esperanças de liberdade da garota.

Antes de qualquer análise, destaca-se em Desmundo o impecável exercício técnico. Para recriar o dia-a-dia do litoral brasileiro de 1570, o diretor Alain Fresnot, de Ed Mort (1997), cercou-se dos profissionais mais competentes: do diretor de fotografia Pedro Farkas e do diretor de arte Adrian Cooper até o pesquisador Helder Ferreira, responsável pela adaptação linguística. Versão para as telas do romance homônimo de Ana Miranda (o primeiro livro de uma série dedicada às mulheres dos cinco continentes), Desmundo é totalmente falado em português arcaico - com legendas no idioma contemporâneo.

Para se ter idéia do perfeccionismo da reconstituição histórica, todos os índios figurantes (cerca de 150 guaranis selecionados na região amazônica e no litoral paulista) tiveram até as marcas de vacina no braço encobertas com maquiagem. De fato, impressiona o cuidado historiográfico e o aspecto visual da película.

E a trilha sonora do maestro John Neschling, atual diretor e regente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, consegue dar cadência sem ser impositiva ou invasiva. Durante o suspense, sobressai a percussão. A solidão de Orisbela é ressaltada com flauta e violoncelo. E nos momentos mais angustiantes, um lindo coro de vozes femininas.

Mas há um problema, que de certa maneira ficou evidente lá em cima, na sinopse: o raso triângulo amoroso. Infelizmente, a narrativa não recebeu o mesmo frescor criativo da parte estética e essa burocracia barroca prejudica o miolo da película. O personagem de Ximeno tem imenso potencial, mas não consegue ser mais do que ilustrativo. O gritante antagonismo físico, moral e religioso que surge entre ele e o arcaico Francisco fica apenas na sugestão.

Não se trata de uma falha fatal. Ao fim, vale mais a dedicação do inatacável elenco, que ainda inclui duas das mais importantes atrizes brasileiras, Beatriz Segall e Berta Zemel - esta, no papel da mãe de Francisco, figura-chave para o entendimento de um dos grandes dramas do filme.

O memorável desfecho mostra que o problema do roteiro foi apenas um deslize. Com a cena de um parto sofrível - engraçado para os inocentes índios, mas melancólico para os portugueses -, encerra-se o filme e fica claro que tipo de herança nós recebemos.

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