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Nada de Carlotas Joaquinas picarescas ou de Caramurus em divertidas orgias sexuais. O filme-de-época da vez não é dirigido por Guel Arraes. Enfim, com Desmundo (2002), produção e distribuição da gigante Columbia Pictures, o cinema nacional consegue espaço na grande mídia para exibir algumas verdades sobre a gênese do seu povo. A imundice das embarcações, a falta de caráter dos jesuítas, a selvageria dos bandeirantes e as várias formas da escravidão assumem a tela.
Não há lugar para globais em forma de coloridas índias, nem para galãs enfeitados como lusitanos assobiantes. O que importa aqui é o realismo com que ficamos conhecendo o estupro, a pilhagem, a invasão, o aliciamento, ou seja lá qual for o nome mais justo para o famoso "achamento" do Brasil.
A trama se concentra em Oribela (Simone Spoladore, corajosa), uma das inúmeras órfãs enviadas por Portugal às novas terras - uma maneira dos colonos estabelecerem família e da Igreja impedir que relações sexuais com índias e negras corrompam as linhagens portuguesas. Oribela, no entanto, se opõe. Quer apenas voltar para casa. Como castigo pela insurgência, recusada por todos, termina casada com o rude Francisco de Albuquerque (Osmar Prado, com uma barba aterrorizante e a competência de praxe). Em meio a uma rotina de abusos, incestos, brigas e tentativas de fuga, ela se desespera. Residem no comerciante Ximeno (Caco Ciocler), um liberal cristão-novo, as últimas esperanças de liberdade da garota.
Antes de qualquer análise, destaca-se em Desmundo o impecável exercício técnico. Para recriar o dia-a-dia do litoral brasileiro de 1570, o diretor Alain Fresnot, de Ed Mort (1997), cercou-se dos profissionais mais competentes: do diretor de fotografia Pedro Farkas e do diretor de arte Adrian Cooper até o pesquisador Helder Ferreira, responsável pela adaptação linguística. Versão para as telas do romance homônimo de Ana Miranda (o primeiro livro de uma série dedicada às mulheres dos cinco continentes), Desmundo é totalmente falado em português arcaico - com legendas no idioma contemporâneo.
Para se ter idéia do perfeccionismo da reconstituição histórica, todos os índios figurantes (cerca de 150 guaranis selecionados na região amazônica e no litoral paulista) tiveram até as marcas de vacina no braço encobertas com maquiagem. De fato, impressiona o cuidado historiográfico e o aspecto visual da película.
E a trilha sonora do maestro John Neschling, atual diretor e regente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, consegue dar cadência sem ser impositiva ou invasiva. Durante o suspense, sobressai a percussão. A solidão de Orisbela é ressaltada com flauta e violoncelo. E nos momentos mais angustiantes, um lindo coro de vozes femininas.
Mas há um problema, que de certa maneira ficou evidente lá em cima, na sinopse: o raso triângulo amoroso. Infelizmente, a narrativa não recebeu o mesmo frescor criativo da parte estética e essa burocracia barroca prejudica o miolo da película. O personagem de Ximeno tem imenso potencial, mas não consegue ser mais do que ilustrativo. O gritante antagonismo físico, moral e religioso que surge entre ele e o arcaico Francisco fica apenas na sugestão.
Não se trata de uma falha fatal. Ao fim, vale mais a dedicação do inatacável elenco, que ainda inclui duas das mais importantes atrizes brasileiras, Beatriz Segall e Berta Zemel - esta, no papel da mãe de Francisco, figura-chave para o entendimento de um dos grandes dramas do filme.
O memorável desfecho mostra que o problema do roteiro foi apenas um deslize. Com a cena de um parto sofrível - engraçado para os inocentes índios, mas melancólico para os portugueses -, encerra-se o filme e fica claro que tipo de herança nós recebemos.