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O Grande Chefe

O Dogma 95 encontra The Office em mais um manifesto de cinismo de Lars von Trier

23.08.2007, às 18H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H28

Cinismo não é apenas algo constante na obra do cineasta dinamarquês Lars von Trier - é também algo crescente. Depois do ataque localizado aos EUA de Dançando no Escuro, Dogville e Manderlay, Von Trier volta o seu olhar cínico ao próprio ato de fazer cinema em O Grande Chefe (Direkøtren for det hele, 2006).

Na história, um executivo dinamarquês planeja vender sua empresa, mas não tem coragem de contar para os seus empregados. Na verdade, ele nunca contou nada - para manter sua fama de bonzinho, sempre inventou que havia um "grande chefe" morando nos EUA e, assim, se omitia de assumir as suas responsabilidades. Agora que a negociação vai sair, ele precisa arrumar alguém para interpretar o "grande chefe" por alguns dias - alguém que assine o contrato da venda.

grande chefe

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Nada melhor para interpretar alguém que não existe do que um ator. Kristoffer (Jens Albinus, de Os Idiotas) chega na empresa atordoado - nem o nome do "personagem" ele sabe, quanto mais os detalhes da empresa e os pormenores do quadro de funcionários. Na base do improviso, Kristoffer se vira. A venda parece que vai sair... Até a hora em que o ator começa a achar que manda de verdade.

Na sinopse, a primeira comédia rasgada de Von Trier fica parecendo uma versão Dogma 95 de The Office. Mas como se trata do dinamarquês, o niilismo se impõe. Von Trier disse que teve a idéia de fazer O Grande Chefe ao ver como sua parceira de produção agia bondosamente com atores - cabendo ao diretor ser o "tira mau". Diante de estrelismos de elenco, Von Trier leva a máxima hitchcockiana - "ator é gado" - ao extremo do desdém.

É daí que saem as melhores piadas do filme, quando Kristoffer chega se achando o Laurence Olivier diante de um trabalho que está longe de ser um Hamlet. Profeta do minimalismo nos tempos de Dogma, Von Trier é cínico na medida em que menospreza as outras partes envolvidas no processo de criação. Autoralidade é coisa para cineasta pensar, não ator. Por extensão, como cinema é criação coletiva, Von Trier vê a própria arte com cinismo.

Visão autômata

Dispensar, por exemplo, o diretor de fotografia, é só mais um passo nesse processo. Em O Grande Chefe, Von Trier inova mais uma vez (ele já havia empregado dezenas de câmeras digitais em 2000, em Dançando no Escuro) e inventa o que chama de Automavision: é um computador quem seleciona a posição da câmera, o enquadramento e o modo com que o som será registrado.

Não estranhe, portanto, quando vir Jens Albinus enquadrado com a testa cortada ou num close-up sem pescoço. Com exceção das tomadas em movimentação de grua, externas ao edifício, nas quais Von Trier aparece como narrador (e provavelmente como operador de câmera, dado o zelo com o zoom), todos os planos dentro do cenário-escritório são estáticos. E o quadro desses planos estáticos foi escolhido por uma máquina.

Automação é outro tema caro ao cineasta (Bjork não reagia aos musicais como uma autômata em Dançando no Escuro?) e aqui ele tenta nos convencer, pela via da ironia, que o elemento "demasiado humano" da criação artística não é fundamental. Como também não é fundamental a suspensão da descrença - a todo instante o narrador metalinguístico interrompe a cena para nos mostrar que aquilo é nada mais um filme.

Claro que, como todo cínico, Von Trier no fundo não acredita no que diz. Automavision à parte, o humor de O Grande Chefe continua dependendo do faro do montador, da maneira como se corta de um rosto a outro para criar a piada. Da mesma maneira, não fosse a absoluta cara-de-pau com que interpreta Jens Albinus, o efeito anedótico do filme não seria o mesmo.

No fundo, Von Trier sabe o valor de um bom ator e de uma boa equipe. De novo, o cínico não acredita no que diz. Se diz, é só para ver se alguém acredita.

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