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Entrevista

Omelete entrevista Eduardo Souza Lima - diretor do documentário <i>Rio de Jano</i>

Omelete entrevista Eduardo Souza Lima - diretor do documentário <i>Rio de Jano</i>

01.10.2003, às 00H00.
Atualizada em 05.11.2016, ÀS 08H02

Cinema e quadrinhos andam de mãos dadas há muito tempo. Na última década, não somente personagens oriundos do papel tem conquistado espaço no celulóide. Autores como Robert Crumb e, mais recentemente Harvey Pekar (American splendor) tornaram-se alvo de películas cinematográficas. Além disso, houve uma enxurrada de documentários televisivos dissecando o meio; muitos deles produzidos aqui mesmo no Brasil onde, contrariando o senso comum, há um interesse grande pelo filão. Mesmo assim, a produção de um documentário sobre um autor de quadrinhos continua não sendo algo fácil.

RIO de JANO marca a estréia na direção cinematográfica de Anna Azevedo, Eduardo Souza Lima e Renata Baldi. O trio fez desse debut não apenas um filme sobre mais um desenhista, mas um pequeno tratado antropológico, onde o artista dá sua visão pessoal sobre o Rio de Janeiro.


Jano vê as "popozudas"

Foi um processo de três anos para chegar à película que, enfim, estréia agora nos cinemas cariocas e, ano que vem, em circuito comercial. Mas quem são as pessoas responsáveis pelo filme?

  • Anna Azevedo é jornalista e roteirista. Atualmente, edita o seu segundo documentário: Batuque na cozinha, vencedor do Prêmio de Roteiro de Curta-Metragem da Riofilme.
  • Renata Baldi é editora de TV e montadora premiada. Na TV Globo, editou Muvuca e Big Brother. Montou, entre outros, A dama da noite, de Mário Diamante, e foi assistente de montagem de La serva padrona, de Carla Camuratti. Além de ter um curta inédito: Eu e ela, sobre o compositor baiano Riachão.
  • Mário Carneiro, considerado um dos mais importantes fotógrafos de cinema do Brasil. Co-dirigiu e fotografou Arraial do Cabo, em 1959, documentário pioneiro do Cinema Novo -movimento que lançou internacionalmente o cinema brasileiro. Com ele, trabalhou o fotógrafo André Vieira, cujo currículo inclui, entre outros eventos, a cobertura da guerra do Afeganistão para a revista americana Newsweek.

Sobre o documentário, que estréia dia 3 de outubro no Festival do Rio 2003, o Omelete conversou com um dos diretores: Eduardo Souza Lima, que é jornalista especializado em cinema e editor-adjunto do Segundo caderno do jornal O Globo.

Esta sempre é a pior parte numa entrevista: o fatídico como se deu a gênese do documentário?

Bom, foi meio por acaso.

Eu sempre quis fazer cinema. Cheguei a fazer dois curtas em vídeo nos tempos de faculdade (eu estudei na Escola de Comunicação da UFRJ), Caçada implacável e Capitão Elektron contra a Ameaça Venusiana, nos anos 80, que fizeram um bom sucesso no circuito de vídeo da época e participaram de festivais como o Rio Cine e o Fest Rio. Tive que parar, porque o próprio cinema brasileiro havia parado e porque o jornalismo tomou conta de minha vida.

Um belo dia, porém, eu a Anna Azevedo (que é minha mulher) e a Renata Baldi, nossa amiga (e montadora, formada na França), estávamos em casa quando falei pras duas da história do Jano desenhando o Rio. Como eu já o havia conhecido de outras passagens pelo Rio, tivemos a idéia de acompanhá-lo em suas novas peripécias pela cidade. Foi no peito e na raça.

Eu tinha comprado uma câmera Hi8 em Manaus, depois compramos uma miniDV em sociedade para fazer o filme. Acabou sendo bom para ambos os lados, pois também servimos de guia para o Jano, levamos o cara a lugares que talvez ele não tivesse acesso ou idéia de ir.

Toda a cidade está representada no filme, da zona sul ao centro, zona norte e zona oeste, de Ipanema à Pedra de Guaratiba, passando por Madureira, Vila Mimosa, Paquetá, Maracanã, Aterro e Lapa. E ainda tem o Jano, que é músico - ele tocou gaita numa banda formada por desenhistas franceses, Os Homens do Presidente, que também tinha, entre outros Vuilleman e Margerin - tocando junto com os Autoramas num show antológico no Garage, o mais underground refúgio do rock do Rio.

Minha vontade agora é não parar mais.

Caçada implacável e Capitão Elektron contra a ameaça venusiana... Só pelos títulos, os filmes já prometem muitas emoções. Fale um pouco mais desse lado pop do começo de carreira. A Ameaça Venusiana tem algo a ver com o bom e velho National Kid?

Ambos eram filmes de gênero. Caçada implacável era basicamente uma perseguição num prédio abandonado, com apenas dois atores, de inspiração noir. O que mais nos guiava era tentar reproduzir no filme o jogo de sombras do Spirit de Will Eisner. Já o Capitão Elektron era um projeto mais ambicioso. Um filme de ficção científica e super-herói, cheio de efeitos especiais. Era mudo e em preto-e-branco. Apesar de ter nascido no mesmo planeta, o Ameaça nada tinha a ver com os Incas. A história era bem simples: um cientista louco que acidentalmente teleportava um psicopata extraterrestre para a Terra. O Capitão Elektron, o defensor do planeta, o derrotava depois de uma sangrenta batalha.

Voltando ao foco: Como bons guias turísticos, houve algum lugar que vocês acham que faltou para levar o Jano?

Eles manifestou a vontade de ir a um centro de macumba, mas não tivemos tempo. Teve um ou outro lugar que ficou de fora por causa disso, mas, no geral, o roteiro foi seguido.


Na Mangueira

Como foi o processo de dirigir o filme a seis mãos? Como conciliaram suas idéias e atividades em paralelo para viabilizar o projeto?

Nós discutíamos os que queríamos fazer antes, mas é claro que muita coisa nasceu do improviso. Num documentário, quem manda é a realidade, não dá para domá-la. Nós fizemos um roteiro básico de lugares que achávamos que seria legal o Jano conhecer e o seguíamos com a câmera.

O trabalho em equipe foi ótimo, já que somos todos amigos - e ficamos muito amigos do Jano também no fim das contas. Foi legal trabalhar em trio também porque, apesar de eu ter conseguido alguns dias de licença no trabalho, era difícil acompanhar todos os cinqüenta dias de filmagem, todos nós trabalhamos. Mas, na maior parte do tempo, estávamos os três sempre presentes. Eu só não pude participar de dois dias de filmagem.

Como você mesmo frisou, num documentário, o material é a realidade. Logicamente, nem tudo de interessante acontece quando a câmera está ligada. Há algum momento inusitado da visita que acabou ficando de fora?

A gente procurou usar no filme o que tínhamos de melhor. Fizemos alguns sacrifícios, mas só porque determinada cena não se encaixava na nossa idéia original, que era a que o Jano servisse de guia o tempo todo, ou por causa do tempo. No Garage, por exemplo, rolou muita coisa legal, mas não dava para botar tudo.

Bom, Jano esteve no Rio em 2000. No mesmo ano, o Omelete noticiou o início da produção do documentário. Mas só agora, passados três anos, ele foi concluído. Quais foram os obstáculos nesse meio tempo?

Muitos.

A gente demorou para encontrar a história (temos mais de 40 horas gravadas), muito até pela falta de tempo para se dedicar apenas ao filme. Trabalhamos em outras coisas e, no fim, o Jano, a gente só pegava nas madrugadas e nos fins de semana da vida.

Outro empecilho é comum no cinema brasileiro: falta de dinheiro. Bancamos as filmagens dos nossos bolsos, mas as fases seguintes, montagem e finalização, são muito caras. A gente ia terminar de qualquer jeito, só não sabíamos quando. Um dia, apresentamos o projeto ao Arnaldo Carrilho, ex-presidente da Riofilme, que resolveu apostar nele.

A noite carioca

Apesar da qualidade de seu trabalho, Jano não é nenhum superstar entre os fãs de quadrinhos locais. Isso certamente contribuiu para que perambulasse tranqüilo e incógnito pelo Rio - não que quadrinhistas sejam assediados constantemente em vias públicas. Então, além do álbum e claro, do documentário, houve alguma outra experiência de troca entre ele e os leitores e artistas do meio no Brasil?

A gente esbarrou com algumas pessoas que o conheciam. O mais engraçado de todos foi o Ali, um príncipe iraniano exilado, criado na Suíça que era fã dele e acabou entrando na história.

O Ali - que, na época, morava em Nova Iorque e agora está no Afeganistão - foi fundamental para dimensionar a importância do Jano para quem não o conhece. Depois, rolaram umas matérias de TV e, por isso, volta e meia, ele era reconhecido nas ruas. Tem uma cena legal de uma cabeleireira do Vidigal que o parou por tê-lo reconhecido da TV.

Como deve ser a carreira do filme após seu lançamento? Há planos pra chegar aos cinemas não só do Brasil, como da Europa?

O filme deve ser lançado aqui em janeiro, pela Riofilme. Planos para o exterior, temos vários e existem distribuidoras interessadas, mas nada de concreto ainda.

Desejamos sucesso a vocês. O filme será lançado apenas no Rio? E há planos para sair em VHS e DVD?

Essa parte fica toda a cargo da nossa distribuidora, a Riofilme. Mas é claro que há interesse dela e nosso de levar o filme a outras praças e formatos.

Segundo o release, o filme faz um paralelo entre as antigas expedições estrangeiras que documentavam os costumes do Brasil colônia através de um filtro europeu. Jano seria o novo estrangeiro numa terra estranha. A intenção do filme não seria também a de despertar o próprio brasileiro acerca de sua auto-imagem?

Isso tem acontecido muito. Amigos que viram o filme costumam dizer que o Jano captou coisas que nunca tinham percebido. Ele é muito observador e o óbvio não o interessa muito. Daí não seu livro não ser uma coletânea de cartões-postais. É mais um trabalho de antropologia visual. Cada desenho equivale a uma pequena crônica da cidade. Há um pouco de crítica social também, mas tudo visto com bom humor e carinho. Jano realmente ama o Rio e sabe enxergar o que a cidade e seus habitantes têm de melhor, por cima de seus problemas. Não é a visão superficial de um estrangeiro, ele realmente mergulhou de cabeça na cidade. Uma amiga paulista assistiu ao filme e disse que não é de interesse apenas para os cariocas, mas para o Brasil inteiro. Tivemos o cuidado de que isso acontecesse, mas tivemos a vantagem de o Rio ser uma cidade-vitrine. Cabe todo o Brasil aqui.

Não acha interessante que, se não interessa só ao cariocas, mas ao Brasil todo, o filme tenha justamente como protagonista um artista estrangeiro? Isso na verdade, não abre um leque ainda mais amplo? Afinal, temos um olhar de fora sem preconceitos. Mais analítico do que o mero terra do samba e carnaval.

O trabalho do Jano sempre foi assim. Ele nunca procurou o óbvio, o folclore, o que todo mundo sabe. É por isso que ele surpreende até quem mora aqui. Não sei se o filme teria esta ótica se fosse outro artista. Mas acredito que quase toda metrópole brasileira é meio cosmopolita, várias cidades numa só.

Esta pergunta é mais pessoal. Afinal, o brasileiro geralmente se sente desconfortável quando ouve da visão que o estrangeiro tem de nosso país. Vocês, como cidadãos do Rio, em algum momento, sentiram algum desconforto com a maneira como Jano retratou não só as paisagens, mas os tipos humanos da cidade?

Eu não fiquei nem um pouco incomodado. Mas teve histórias engraçadas a respeito disso.

Primeiro, o desenho do Pão de Açúcar, que deixou muita gente invocada, porque ele desenhou a Praia do Flamengo imunda. É preciso que se saiba que fomos lá num fim de tarde de domingo, de um feriadão. A praia estava mais suja do que de costume mesmo. Mas, além disso, o Jano não é um desenhista naturalista. Ele pode exagerar em determinados pontos. O que quis foi justamente dessacralizar a imagem do Pão de Açúcar, mostrar que não é apenas um ícone, mas algo que faz parte da vida e do cotidiano do carioca.

Outra coisa que incomodou algumas pessoas - as que não tiveram a felicidade de nascerem flamenguistas - é que em quase todos os desenhos têm alguém com uma camisa do Flamengo. Dessa vez, ele não exagerou: o vermelho e o preto fazem parte da paisagem do Rio, mesmo que a torcida arco-íris (os torcedores dos outros times, é uma expressão comum aqui) não aceite.

Na sua opinião por que os artistas de quadrinhos locais, principalmente os influenciados por heróis e mangás, não se mostram interessados em mostrar um Brasil tão sincero em seu trabalhos?

O problema é que aqui não há uma indústria e os artistas têm que tocar o barco conforme a moda da época. É uma questão de sobrevivência. Mas vejo trabalhos como o do saudoso Flavio Colin, do Marcello Quintanilha (ex-Gaú) e do Lélis, entre outros, que têm esta preocupação e o fazem muito bem.

Como o Allan Sieber entrou no projeto?

Além de ser nosso amigo, o Allan é um grande conhecedor e admirador da obra do Jano e tem o seu próprio estúdio de animação. Daí que foi uma coisa natural.

O trabalho de Allan Sieber e sua equipe tem um apelo underground muito forte. Como foi o casamento de sua linguagem com o traço de Jano que, por mais anticonvencional que possa ser, ainda é representante de uma escola européia de quadrinhos?

O Jano é da escola européia, mas é, fundamentalmente, um artista underground, assim como o Allan. Mas procuramos não mexer muito no seu desenho, apenas chamar atenção para alguns detalhes que podem passar despercebidos. O Allan cuidou também do design dos créditos.

Houve dois tempos na produção do filme. A visita de Jano ao Rio e a criação do livro na França. O que mais lhe chamou a atenção nesses momentos distintos? Houve expectativas geradas no início do processo não correspondidas (ou mesmo superadas) quando Jano concluiu suas pranchas?

A grande diferença é a que existe entre o Rio e Paris.

O Rio é uma cidade bem mais alegre e isso se refletiu no comportamento dele. Jano se sentia em casa, parecia um carioca. Em Paris, assumiu o velho ar parisiense, mais introspectivo, sério. Estivemos lá em maio de 2001, fazia frio, chovia, o céu estava sempre cinzento. A diferença fundamental, porém, é que aqui Jano estava mais despreocupado. Pegamos o cara em Paris em pleno processo criativo, que, às vezes, pode ser muito doloroso. Ele tinha um prazo para entregar as pranchas e as suas lembranças já não eram tão vivas. Apesar disso, acredito que superou todas as expectativas em relação ao livro.

Depois de receber Jano no Rio, como foi vê-lo - em seu próprio ambiente - transformando toda a informação acumulada em algo novo?

Foi engraçado ver que já havia perdido o ar corado que ganhou aqui. Foi fascinante vê-lo trabalhar, pois é fascinante o lugar onde ele trabalha. O seu ateliê é a sua própria casa, num subúrbio parisiense, decorado com peças de artesanato que levou como recordações de suas viagens e com coisas feitas por ele mesmo. O Jano também faz belos trabalhos em madeira.

Além disso, estava trabalhando no novo álbum da série As fabulosas viagens da Santa Sardinha e tinha construído uma maquete de uma caravela para servir de modelo. Geralmente, espalha algumas fotos sobre a sua mesa - ele faz isso apenas para ter algumas referências arquitetônicas e coisas escritas, como placas de bares, o resto é de memória mesmo e muitos esboços são feitos durante as viagens - e parece ter a idéia exata do que quer quando chega ao papel. Usa lápis para desenhar, cobre com nanquim e pinta com aquarela. Isso é extremamente difícil, pois o papel de aquarela é poroso, a ponta da pena de nanquim pode agarrar nele e arruinar o trabalho. Foi legal ver também o porquê do seu traço ser tremido: é que as suas mãos tremem mesmo, ele costuma desenhar com uma mão apoiada na outra, para tremer menos.

Mesmo com o pouco prestígio dado aos quadrinhos no Brasil, nos últimos anos, vimos surgir vários documentários locais a respeito dessa arte (tanto sobre autores estrangeiros quanto brasileiros). Como você vê o papel do documentário na valorização da linguagem dos quadrinhos perante o público?

Acho o cinema e a TV fundamentais na divulgação não só dos quadrinhos, como de outras artes. São elementos facilitadores, fazem com que as pessoas tenham mais acesso. Mas é preciso ter cuidado com a linguagem, para que ela não afaste ainda mais as pessoas. No nosso documentário em especial, tivemos o cuidado de trabalhar com uma linguagem bem pop e informal, porque assim é o trabalho do Jano e para que as pessoas se divirtam enquanto conhecem o seu trabalho.

Você disse que Minha vontade agora é não parar mais. Então, quer dizer que há outros projetos engatilhados? Poderia nos contar o que vocês da Hy Brazil (produtora formada pelo trio de diretores) pretendem fazer daqui para frente?

Nós temos alguns projetos engatilhados sim, mas ainda é cedo para falar deles. O que está mais adiantado é A Pedra do Reino (com roteiro e direção de Anna Azevedo), sobre um episódio sangrento que aconteceu no sertão pernambucano em meados do século XIX e inspirou o Ariano Suassuna e escrever o Romance da Pedra do Reino. A Anna está finalizando um documentário sobre quatro tias da Portela chamado Batuque na cozinha. E eu trabalho no roteiro da adaptação de Vós, romance de Toni Marques. Digamos que é sobre mendigos canibais mutantes.

O Omelete agradece a Eduardo pela entrevista.

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