Filmes

Entrevista

Omelete entrevista Lina Chamie, a diretora de A Via Láctea

Ela fala de vertigens amorosas e da louca caça aos engarrafamentos

06.11.2007, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H30

Em comum com o primeiro filme da diretora Lina Chamie, Tônica Dominante (2000), A Via Láctea tem o apreço pelo cinema de sensações. A identificação do espectador com o filme depende não só de acompanhar o que se passa na tela, mas também de absorver. Sons quebrados e cenas fora de ordem traduzem a cacofonia sentimental em que se encontra Heitor (Marco Ricca) no percurso motorizado que o separa de sua namorada - provável ex-namorada - Júlia (Alice Braga). Como representar em imagens um estado de espírito, entre outras coisas, é o que Lina Chamie explica aqui.

Por que escolher a Avenida Paulista como locação principal do filme?

a via láctea

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Lina chamie

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Lina Chamie

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A Paulista como o coração da cidade, como emblema da dificuldade de se mover nesse manancial de carros, funciona em outro tempo. O tempo que se leva para ir de um ponto A a um ponto B até nos transporta para um tempo interior. Essa coisa que ficar fechado dentro de um carro sozinho no engarrafamento é uma situação emblemática dentro do filme... É o entorno que dialoga com o personagem, às vezes até explicitamente. O que está representado pela cidade é o trajeto, a tentativa e até a impossibilidade de chegar ao destino amoroso - o que faz A Via Láctea ser um filme de busca, de desejo.

Dentro do carro, a caminho da casa da namorada, o personagem do Marco Ricca começa a pirar dentro do carro, e daí vem a estrutura de flashbacks do filme.

Quando estamos sozinhos num carro temos mais tempo de ficar refazendo cenas na cabeça, de ficar elucubrando... Principalmente um personagem que está numa situação de angústia e incerteza como o personagem Heitor - uma das primeiras perguntas que ele se faz é "Será que ela não me ama mais?". Esse questionamento está batendo o tempo todo na cabeça e no coração dele. Essa situação que é típica de São Paulo é, no fundo, muito humana, porque permite ao personagem mergulhar no pensamento - às vezes até no delírio.

Como era o desenho do trajeto na origem? Vocês ligaram a câmera dentro do carro e saíram rodando?

Tínhamos desenhados na pré-produção dois trajetos - o primeiro é o trajeto do filme, previsto no roteiro, e o segundo é o trajeto de filmagem, que montamos a partir da pergunta: "Onde podemos captar essas imagens para o trajeto do roteiro?". Partimos do coração do engarrafamento e aos poucos fomos nos espalhando pela cidade. A logística era importante porque é uma produção com orçamento baixo, então toda a parte do trânsito captamos em Mini-DV [filmadora digital de mão], sem luz, dentro do carro, com o Marco Ricca guiando. Não é uma situação em que eu fecho a rua e tenho lá meus carros, meu engarrafamento. Éramos os únicos que comemorávamos engarrafamento, e passávamos o dia no trânsito. Quando o rádio dizia que tal rua estava parada, corríamos para lá.

Mas, por ser DV, que trabalha com fitas de baixíssimo custo, você escolheu ligar a câmera e sair rodando ou já pensou na decupagem a partir daí?

Era assim: vamos atravessar a Paulista num grip tal com a câmera na posição A; agora vamos voltar a Paulista com a câmera na posição B; vamos de novo atravessar a Paulista com a câmera na posição C. Quer dizer, tem um raciocínio de decupagem pensando já na posterior montagem, mas efetivamente a gente rodava muito, por estar com a Mini-DV. Quando cheguei na montagem eu tinha 50 horas de trânsito, mas tinha também um roteiro muito bem trabalhado, que ganhou prêmios na Espanha...

E tem uma parte do filme que foi rodado em película.

Que são as memórias, os momentos idílicos, que estão numa outra dimensão, fora desse embate com a cidade. São momentos de repouso que eu filmei em 35mm ou em Super-16 justamente para ter uma textura que repousasse o olhar. Esse material tem todo um outro tratamento: tripé, câmera mais fixa. Tem uma coisa legal no cinema brasileiro, que às vezes você precisa transformar limitações em virtudes... No fim o filme foi feito com 400 mil reais. Não tinha como eu usar estúdio, por exemplo, tanto pela questão do orçamento quanto pela proposta do filme, que é um filme de busca, de espaço. É um filme que precisa do espaço, e quando escolhíamos esse espaço interferíamos o mínimo ali.

Vejo uma dicotomia entre o espaço do Heitor, que é o carro, e todo o resto, que é a casa da Júlia, o teatro, a livraria... Como se o espaço do Heitor não estivesse no mesmo mundo desses outros espaços.

Isso que você chama dicotomia é justamente a construção dos dois personagens. Um é professor de literatura, mais velho, quarentão, e outra é uma jovem veterinária. A construção deles é o abismo entre eles - ele é o homem da palavra, da retórico, ela é a mulher que pisa descalça no chão. A locação é uma extensão de cada personagem. E essas diferenças que os atraem e os separam, o que muitas vezes é inerente à relação amorosa, são filmadas de maneira abismal, vertiginosa. Quando filmo, por exemplo, no [Edifício] Martinelli, eles estão no terraço e a câmera vem de cima, ela paira. É também um filme sobre a vertigem amorosa.

Apesar de ser um personagem cerebral, o Heitor filtra tudo o que acontece ali com ele de um jeito bastante caótico, um caos que está também no som fora de sincronia.

Tem algumas coisas que estão no filme, como o som do coração, que traduzem muito o estado emocional do personagem, já que o filme é visto pelo olhos do Heitor. Essa vertigem emocional inevitavelmente traz para a tela - e aí entra o uso de todos os elementos do cinema, o som, a palavra - elementos que são interiores daquele personagem.

Outro ponto importante é a montagem não-linear do filme, e aí você bancou uma aposta, que era ter como montador um iniciante, o André Finotti, ao contrário de alguém escolado como o Paulo Sacramento, que montou o seu primeiro filme.

É o primeiro longa de ficção que o André monta, mas essa montagem já vem guiada por uma estrutura que estava muito clara no roteiro. A fragmentação foi muito pensada e construída no roteiro. Quanto à experiência... Nem estou comparando, mas Orson Welles fez Cidadão Kane com 23 anos. O trabalho é muito mais uma entrega e um entendimento da proposta do que necessariamente a burocracia da experiência. A coisa com o André Finotti funcionou muito bem porque ele tem uma das virtudes de quem está no primeiro longa: ele não tinha medo de cortar. E o único jeito de montar esse filme é não ter medo de montar esse filme.

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