Filmes

Notícia

Otávio e as Letras

Tirando a colorida superfície de delírios que cobria o cinza de São Paulo, o que sobra?

24.04.2008, às 17H00.
Atualizada em 24.11.2016, ÀS 08H02

Otávio e as Letras (2007) começa ao som do mar. Em close-up desfocado, vemos um rosto de homem diante de uma praia. Quando a câmera nos dá o foco, a praia é falsa. É um daqueles anúncios de banca de jornal promovendo guia turístico. Estamos em São Paulo e o som era uma trucagem, porque em São Paulo não tem mar e sobra miragem.

Que o diretor Marcelo Masagão tenha rodado o seu quarto longa-metragem no antes, durante e depois da lei municipal que reduziu fachadas e extinguiu outdoors é mais do que uma feliz coincidência. Otávio e as Letras entrará para a história - mais do que como um novo ensaio cabeça do autor de Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos, Nem Gravata Nem Honra e 1,99 - Um Supermercado que Vende Palavras - como o registro histórico de uma transformação da cara da cidade.

otávio e as letras

None

otávio e as letras

None

otávio e as letras

None

A profusão de fotos, nomes e slogans que compõem (ou compuseram) a paisagem de São Paulo, criando uma colorida realidade de delírios por cima da morta superfície cinza, atormenta Otávio (Donizete Mazonas). O protagonista do filme ronda sebos, salas de espera de dentistas e bancas atrás das tais letras. Quando chega em casa, Otávio arma toda uma solenidade com um único fim: preencher com caneta azul as páginas e páginas de jornais e revistas que ele trouxe da rua. Dá pra entender por que Masagão agradece à Bic no início do filme - não dá nem pra calcular quanta tinta Otávio gasta com sua rotina diária de rasuras e rabiscos.

Além de Otávio, todos os personagens do filme estão atrás de se completar - até mesmo a freira que cola toda feliz as figurinhas no seu álbum do Campeonato Brasileiro. Essa necessidade de preenchimento faz sentido numa cidade que, de uma hora para a outra, se viu nua. Nas laterais de prédios onde antes estavam os modelos de roupa íntima da propaganda restou apenas o contorno feito de sujeira. O que sobra de São Paulo sem a famigerada "poluição visual"? O que temos a oferecer quando a máscara cai?

Filmando as ruas vazias do centro da cidade como num imenso tempo morto, pontuando a pouca ação com momentos de surrealismo (parar para jogar xadrez na escadaria do Municipal, por mais prosaico que isso seja, não deixa de ser algo surreal), Masagão cria um painel acerca da representação, uma poesia (concreta?) das imagens que criamos para dar identidade a nós mesmo - versos esses que poderiam muito bem se passar no clássico As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino.

Há o problema, claro, como em toda poesia, de achar a forma ideal de articulá-la (ainda mais diante de um público de cinema acostumado com a "prosa"). Otávio e as Letras se mostra aos poucos, e, depois de 83 minutos, quando terminamos de ser apresentados, a sessão termina. Como o crítico Jean Claude Bernardet, um dos mais importantes teóricos de cinema do Brasil, colaborador no roteiro do filme, disse em seu blog, "[Otávio e as Letras] não explica, não analisa, nos deixa a sós com nossa doença". As próprias cenas que Masagão filma dentro de um cinema são a deixa: se o espectador espera conclusão, terá que pensá-la.

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.