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Quadrinhofilia: Por Dentro do Gabinete...

Quadrinhofilia: Por Dentro do Gabinete...

19.09.2001, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H12

Algumas décadas após um certo Jack tornar-se famoso ao estripar prostitutas e outras tantas antes dos serial killers virarem moda, o Dr. Caligari e seu fiel sonâmbulo já espalhavam terror nas telas de cinema.

O ano era 1919 e nos cinemas alemães estreava... Das Kabinett des Dr. Caligari.

Dizer que O gabinete do dr. Caligari é um marco na história do cinema mundial soa até redundante e pouco esclarece àqueles não familiarizados com os quase esquecidos e empoeirados filmes mudos do início do século. A olhos não familiarizados, seus gestos e expressões exageradas, seu ritmo e a fotografia preto e branco podem se tornar um convite ao riso ou mesmo ao tédio.

Por falar em cores, na década de 90, o filme foi relançado em vídeo (e agora em DVD). Restaurada a partir de uma cópia encontrada em Montevidéu, a obra teve recuperadas suas cores originais: azul, amarelo, verde e castanho. Em outras palavras, um pequeno (e importantíssimo) naco da história do cinema do século XX pôde enfim ser reavaliado com toda a sua intensidade.

A trama resume-se da seguinte forma: dois homens conversam sobre histórias de horror. O mais jovem relata uma série de assassinatos que ocorreram em sua cidade, com a chegada do Dr. Caligari - interpretado por Werner Krauss - e seu show de sonambulismo. Contar mais do que isso é estragar as surpresas. Afinal, há muito mais a se revelar do que poderia exprimir uma sinopse grosseira.

Mais do que ousadia estética

Oitenta anos atrás, o cinema ainda buscava sua própria linguagem. Neste garimpo de identidade, a nova mídia permitia-se a experiências que muitos dos nossos atuais grandes cineastas, do alto de toda a sua parafernália digital, sequer ousam imaginar. Foi em meio a experimentação que Caligari tornou-se único. Exerceu tamanha influência no seio do Expressionismo alemão que criou uma corrente de seguidores denominada "caligarismo".

Antes, ninguém havia cogitado contar uma história que não através da ação. No Gabinete, cenários e indumentária podem ser considerados os verdadeiros narradores da história. Ao longo da fita, são esses elementos, normalmente secundários, que mais saltam aos olhos revelando não só o que acontece, mas o íntimo das personagens. Cada quadro, na verdade, é uma tela, repleta de exageros e distorções; quase uma história em quadrinhos. Vale dizer que o próprio roteiro inovou ao apresentar uma história dentro de outra.

A notável mescla de cinema e artes plásticas não se deve apenas a seu diretor, Robert Wiene, mas também aos artistas de peso como Herman Warm, Walter Rhorig e Walter Reiman, do grupo Die Sturm (A Tempestade), responsáveis pela cenografia e figurinos do Gabinete. Mais do que apresentar possibilidades visuais e narrativas até então inéditas no cinema, a película extrapolava o puro exercício da linguagem.

Naqueles dias, recém-egressa da malfadada Grande Guerra, a Alemanha estava longe de ser otimista. O desencanto ofereceu-se como alvo perfeito para o senso crítico de seus jovens roteiristas, Carl Meyer e Hans Janowitz. Ambos pretendiam que sua história de horror fosse uma metáfora para a situação caótica por que passava seu país. Queriam denunciar a onipotência do estado, simbolizado pela figura opressora e totalitária de Caligari. A apatia dos soldados que, sem consciência, obedeciam ordens fez-se representar pelo sonâmbulo Cesare protagonizado por Conrad Veidt. No entanto, com a chegada de Fritz Lang, o lendário diretor de Metrópolis, Dr. Mabuse e vários outros clássicos do cinema alemão, o projeto tomou feições menos ideológicas.

O tratamento dado por Lang ao roteiro tratou de realçar toda a parafernália pictórica, relegando ao segundo plano qualquer sentido político. Entretanto, pressionado a finalizar outros projetos, Lang teve de abandonar o filme. Ao assumir seu lugar, Wiene preferiu manter as diretrizes do antecessor, fazendo prevalecer a ótica de um louco sobre a realidade.

E esse é o filme que chegou a nós.

A gênese da história

A história do Gabinete, todavia, não se resume apenas às elucubrações de um punhado de jovens artistas. Ela tem raízes mais profundas nas experiências pessoais de seus dois roteiristas.

Carl Meyer era obcecado pelos abusos que cometeram os psicólogos militares, aos quais fora encaminhado várias vezes durante sua participação na Grande Guerra. Janowitz, por sua vez, trazia, como embrião para o argumento do filme, uma aterradora experiência pessoal.

Em outubro de 1913, o então jovem poeta transitava por uma feira em Hamburgo, em busca de uma atraente jovem que lhe chamara a atenção. Ele a seguiu até um sombrio parque nas redondezas, onde pôde ouvir a moça rir, desaparecendo em meio a floresta. Quase desistindo da perseguição, uma sombra, como de tocaia, saiu veloz do matagal, embrenhando-se na escuridão rumo às risadas que Janowitz acabara de ouvir. Por mais estranha que fosse a situação, ele decidiu voltar à cidade em vez de ir à cata o homem que julgara ser apenas um comum burguês.

Na manhã seguinte, os jornais estampavam: "Horrível Crime Sexual em Holstenwall. A jovem Gertrude...Assassinada". Movido pela desconfiança de que Gertrude fosse a jovem que seguira, Janowitz compareceu ao enterro. Suas suspeitas se confirmaram. Pior: em plena cerimônia, reconheceu o burguês com quem cruzara em meio aos arbustos. O furtivo homem também o reconhecera, desaparecendo em seguida. Não havia dúvidas, aquele era o assassino.

Anos mais tarde, em Berlim, Mayer e Janowitz tornaram-se amigos e juntos assistiram ao espetáculo "Homem-Máquina", onde um jovem, aparentemente em transe realizava atos de extrema força. O mais impressionante, porém, não eram seus feitos físicos e sim as premonições que oferecia ao público estarrecido.

Seis semanas depois, estava pronto o argumento original do filme. O nome da película surgiu das paginas de um livro raro chamado Cartas desconhecidas de Stendhal, em que o autor francês afirmava ter, ao voltar da guerra, conhecido um oficial chamado Caligari. A personagem moldada a partir do antigo arquiinimigo de Mayer ganhava, assim, o nome que a consagraria. Holstenwall tornou-se a cidade fictícia onde ocorreriam os crimes. A feira também estava lá, bem como Cesare, inspirado no artista em transe. Da junção destes elementos reais, surgiu uma historia que pretendia expor a loucura da autoridade e seus abusos.

A contragosto dos roteiristas, o filme de Wiene fez exatamente o oposto. Exaltou quem deveria denunciar e condenou o antagonista deste a ser um demente. O resultado é um filme conformista em vez de revolucionário, onde só o poder estabelecido é capaz de lançar luz sobre a loucura da personagem Francis. O final, senão feliz, foi ao menos esperançoso, bem ao gosto do público e de seus produtores. Afinal, não é de hoje que autores vêem-se obrigados a concessões comercias a fim de recuperar seu investimento. Em todo caso, a história garante seu compromisso com o roteiro original, estabelecendo sutis analogias e sendo pioneira ao dotar objetos inanimados de matizes emocionais e psicológicos.

Por outro lado, mesmo com sua vertente política atenuada, O gabinete... teve o mérito antecipar Hitler e sua manipulação das massas. Tal qual Caligari com seu inocente Cesare, o ditador transformou os alemães em sonâmbulos.

O doutor, o sonâmbulo e as outras mídias

Houve várias adaptações de O gabinete... para os quadrinhos, sem falar do sem número de vezes que a obra foi citada em gibis.

Mais recentemente, em 1992, a editora Monster Comics lançou The Cabinet of Doctor Caligari, uma mini-série em três partes assinada por Ian Carney e Michael Hoffman, bem como uma versão futurista intitulada Caligari 2020.

Em 1999, o casal de roteiristas Randy e Jean-Marc Lofficer e o ilustrador Ted Mckeever juntaram elementos de Batman, Super-homem e da Metrópolis de Lang aos do filme de Wiene no fantasioso especial Nosferatu.

Ainda sobre Batman, vale lembrar que, em 1992, o novo visual criado para a personagem Pingüim no filme Batman Returns de Tim Burton - posteriormente adotado no desenho animado - é uma clara homenagem ao Doutor Caligari.

Aliás, segundo Bob Kane, Conrad Veidt (Cesare), em sua atuação no filme The Man Who Laughs (1928), acabou servindo como protótipo para o vilão Coringa em 1940. Jerry Robinson, o criador do palhaço do crime, negue taxativamente esta versão, mas a semelhança é notável.

Eu mesmo cheguei a cometer a heresia de adaptar o filme numa HQ de 8 páginas. Com texto de Gian Danton, essa história está na gaveta desde que o projeto da revista Manticore – Quadrinhos de terror e ficção científica (leia aqui) foi cancelado. Ela teria sido incluída na terceira edição do gibi que não passou da segunda. Algumas das imagens desta HQ ilustram esta matéria.

Até a música rendeu-se aos encantos do hipnotizador. A banda Red Hot Chili Peppers, no clipe “Otherside”, de seu álbum Californication, rende uma bela homenagem ao expressionismo alemão e especialmente a este filme.

O próprio cinema também prestou "homenagem" ao bom doutor com uma pérola do trash: Dr. Caligari, um filme de quinta categoria que, de tão ruim, serve apenas para deixar claro que tudo que esta mídia tinha a dizer sobre o tema, ela o fizera em 1919.

Entre no Gabinete

Se você ainda não conhece esta ilustre obra da cinematografia muda não deixe procurá-la na sessão de clássicos de uma locadora decente. Com veneráveis 82 anos de idade, ela ainda influencia não só o cinema, mas muitos de nossos sonhos (e pesadelos).

Recomendo que você faça bom proveito dos extras do DVD. Além dos 69 minutos do filme, o disco ainda oferece a biografia do diretor e dos atores, estudos sobre a estética da película e a psicologia do cinema expressionista, o trailer do filme Genuine também de Wiene e um texto especial em que o diretor Antunes Filho discute o caligarismo na interpretação teatral.

Enfim, as portas desse seleto gabinete ainda estão abertas... é só entrar.

José Aguiar, além de ilustrador e quadrinhista, nas horas vagas gosta de revirar o baú e desenterrar coisas velhas; principalmente as que tenham relação com os quadrinhos.

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