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A magia precisa de regras? Brandon Sanderson e Mistborn dizem que sim

“Sempre que notarem uma inconsistência na história, culpem o mago”.

28.12.2016, às 13H52.
Atualizada em 28.12.2016, ÀS 16H32

Era uma vez, há muito tempo atrás, uma linda jovem chamada Sarah. Ela adorava brincar com seus bonecos e provar os vestidos que seu pai lhe presenteava, e passear com o cão pelo reino de Nova York aliviava a saudade que sentia da mãe.

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A madrasta de Sarah, contudo, invejava sua liberdade, e por isso a obrigava cada vez mais a ficar em casa com seu irmãozinho – um bebê mimado e chorão que desejava tudo para si. Sarah se sentia uma escrava.

Mas o que ninguém sabia era que o Rei dos Duendes havia se apaixonado por ela, e com isso lhe concedido poderes. Então, em uma noite em que o bebê havia sido particularmente cruel, Sarah desejou que os duendes pudessem ajudá-la. “Diga as palavras certas”, sussurraram as vozes na escuridão. “Diga as palavras certas e nós o levaremos para o Labirinto”.

Gosto de magia. Aposto que você também. E ainda que exista um prazer inocente em sermos feitos de bobo por alguém usando cartola, creio que a ficção fantástica seja o lugar onde nós realmente gostamos de vê-la em ação, construindo as metáforas que nos ajudam a compreender o mundo real.

No entanto, gosto de parafrasear Homer Simpson quando digo que, assim como o álcool no mundo real, a magia pode ser a causa e a solução de todos os problemas na ficção fantástica. Nas mãos do sábio, uma força criativa. Nas do inexperiente, destruidora. E eu não me refiro exclusivamente ao lado de dentro da história.

Durante a CCXP 2016, quando abordado por um jovem aspirante a autor que me apresentava seu trabalho, questionei-o sobre as regras do sistema mágico do livro que ele estava escrevendo.

“É magia, ué”, respondeu ele, dando de ombros. “Não tem regras”.

“Então por que Gandalf simplesmente não “fez uma mágica” e desapareceu da torre onde Saruman o aprisionou?”, retruquei.

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“Para inventar o mundo dos magos tive que investir um tempo absurdo aprendendo sobre alquimia. Talvez a maior parte desse estudo eu nunca venha a usar nos meus livros, mas preciso conhecer em detalhes o que a mágica pode e não pode fazer, para que possa estabelecer os parâmetros e encontrar a lógica interna das histórias”. – J. K. Rowling

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A definição da própria palavra (“a produção de atos extraordinários e sobrenaturais”) costuma dar margem ao equívoco; o que as grandes obras de fantasia nos ensinam é precisamente o oposto da resposta que o jovem me apresentou: dos contos de Grimm ao reino de Westeros e os novos clássicos, a magia enquanto recurso literário respeita estruturas (por vezes vagas e misteriosas) para que a narrativa se mantenha coesa.

Um dos maiores proponentes da discussão é Brandon Sanderson. Autor da excelente série de livros Mistborn (cujo capítulo final da trilogia acaba de ser lançado pelo selo LeYa/Omelete), Sanderson propõe – de forma divertida – três “Leis” da Magia que sintetizam e apontam os holofotes para os elementos-chave do assunto:

1) Primeira Lei de Sanderson: a habilidade do autor resolver um conflito com mágica é DIRETAMENTE PROPORCIONAL a quão bem o leitor compreende tal mágica.

Exemplo: a forma como o Doutor Estranho barganha com Dormammu, utilizando-se de um artefato previamente apresentado durante a trama.

Enquanto ferramenta de escrita, a magia é capaz de envolver os leitores em um jogo deliciosamente imersivo OU afastá-los com Deus Ex Machinas impossíveis de digerir. Como bem sugeriu John Campbell, um dos mais influentes e importantes editores da história da ficção científica (e crítico ferrenho do gênero aqui em discussão), a fantasia medíocre é aquela que “inventa uma nova regra sempre que precisa de novas regras”. Sem esforço não há mérito, e a mente humana – no jogo constante em busca de consistência, padrões e simetria – tende a se desligar da obra como se lhe arrancassem o plugue da Matrix.

2) Segunda Lei de Sanderson: limitações > poderes.

Exemplo A: No mundo de Harry Potter, magos e bruxas utilizam varinhas com o intuito de canalizar a magia, aumentando a precisão e a potência dos feitiços. Ainda que a magia “a mãos livres” exista, sua prática é volátil e extremamente difícil – mesmo para os mais poderosos e experientes.

Exemplo B: Superman (sim, superpoderes também funcionam da mesma forma que “sistemas mágicos”) enfrentando um robô gigante qualquer? Bacana. Vê-lo enfrentar um robô gigante cuja bateria central é feita de Kryptonita? Melhor.

Exemplo C: “Regra número um: não posso matar ninguém... então não peça! Regra número dois: não posso fazer ninguém se apaixonar por você, lindão. Regra número 3: não posso trazer ninguém de volta dos mortos... Não é uma imagem bonita, EU NÃO GOSTO DE FAZER!!”. – Gênio da lâmpada, Aladdin

O que a magia PODE fazer tende a ser menos interessante do que ela NÃO PODE. Limitações provocam conflitos – faz personagens (e escritores) contornarem dificuldades e lutarem por objetivos de forma inteligente.

3) Terceira Lei de Sanderson: expanda o que você já possui antes de criar algo novo.

Exemplo: A Força, em Star Wars.

Antes de abrir o baú criativo e libertar outros poderes mágicos em seu universo, por que não examinar como a sociedade reage a UM, primeiro? Determinada cultura com tendências violentas pode usá-lo como arma, enquanto outra mais pacífica talvez o enxergue como forma de engenharia ou cura. Sistemas mágicos memoráveis tendem a ser aqueles com relativamente poucos poderes, porém muito bem aprofundados pelo autor. Se sua mágica pode transformar pedra em pão, como isso afeta o mundo ao redor dos personagens? Como a economia, a política e outros itens da estrutura social reagem a algo assim?

A magia precisa de regras? Faço parte da escola que responde “sim” – o que não significa que não possamos distorcê-las. Apesar do uso da palavra “leis”, Brandon Sanderson reforça em entrevistas que, da mesma forma que é possível violar regras gramaticais ou musicais e resultar em um resultado positivo, escritores podem (e devem) experimentar com as limitações dos seus sistemas mágicos. Conhecer profundamente a estrutura, todavia, será sempre crucial para que possamos violá-la – da mesma forma que um ilustrador precisa dominar a anatomia humana básica antes de ilustrar o Hulk.

Um Hulk bem desenhado, pelo menos.

Magia. Qual o lance, heim? Me pergunto o que vocês estavam querendo quando entraram no jogo... É sempre algo. Algo específico que você acha que vale o risco. Dinheiro. Sexo. Vingança. Poder. Iluminação. Coxas menores. Faz muito tempo para a maioria de vocês, eu sei. Talvez vocês nem se lembrem. Merda, talvez nem queiram. Mas eu vou lhes dizer algo de graça: no final das contas, é sempre sobre a mesma coisa. É sempre sobre entropia. Sim, entropia. O universo está desmoronando. Coisas estragam. Você não pode pedir algo sem nada em troca. É como Deus disse a Adão quando o chutou para fora do paraíso: “agora você tem que trabalhar para viver”. Então hoje nós empurramos e puxamos e suamos. Damos uma porrada de energia em troca de quase nada. A terceira Lei da Termodinâmica, certo? Aquela que todos amamos odiar. Mas com magia é diferente... Olhe para este vinho. Como ele chegou aqui? Uvas tiveram que ser esmagadas. Camponeses tiveram que ralar. Muito esforço. Muita energia. E uma vez que você o beba, acabou. Quando as coisas desmoronam, elas não se recolocam no lugar sozinhas... Mas se você pede a um demônio que lhe traga um bom vinho – ou melhorá-lo com um feitiço – bom, você está trapaceando, não está? É de graça. Sem uvas. Sem camponeses. Sem entropia. Então aqui estamos nós, buscando recriar o Paraíso na Terra. Tentando nos esgueirar de volta ao Éden pela porta dos fundos. Seus arrogantes de merda... Não estamos brincando com fogo; estamos brincando com napalm”.

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– John Constantine, edição 215, R.S.V.P., por Mike Carey

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*Affonso Solano  é cocriador do Matando Robôs Gigantes, escritor do livro O Espadachim de Carvão e tem um canal no YouTube chamado Hora Super.

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