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Sala dos Roteiristas | M. Night Shyalaman, um verdadeiro artista

Uma homenagem ao cineasta que segue contra tudo e todos

12.05.2016, às 16H06.
Atualizada em 12.05.2016, ÀS 16H24

Começo essa coluna com um aviso importante. Se em meu primeiro texto no Omelete usei um tom debochado para um diretor que nunca deveria ser levado a sério, aqui usarei um tom sério para um cineasta recebido sempre com muito deboche. Eis, portanto, minhas não tão breves palavras sobre um dos maiores diretores da atualidade: M. Night Shyamalan.

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Diz a lenda que, no intuito de conseguir tornar-se um diretor em Hollywood, Shyamalan estudou todos os elementos que faziam um filme tornar-se um sucesso comercial: era bom ter um protagonista branco, masculino, em torno dos 40 anos, não podia ter muito sangue ou sexo para não sair da classificação PG-13, precisava de uma primeira cena impactante que filiasse o espectador ao resto da história e, entre outras coisas, tinha que ter algo novo, que o diferenciasse de todos os filmes de sucesso no momento. O jovem roteirista de O Pequeno Stuart Little juntou então todos os elementos, pensou em uma grande virada dramática e escreveu O Sexto Sentido. O resto é história.

Essa história - verdadeira ou não - é salutar em explicar não exatamente a obra de Shyamalan, mas o mito que se criou em cima dele e que, em alguma medida, acabou por transformá-lo em uma piada para a crítica (o público, por sua vez, nunca o abandonou totalmente, e é interessante perceber como alguém tão mal falado quanto o cineasta segue fazendo, mesmo que com alguma dificuldade, filmes de aproximadamente dois em dois anos, um certo recorde para a produção hollywoodiana atual).

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Como boa parte dos filmes posteriores a O Sexto Sentido continuaram a trabalhar com os mesmos elementos - e em especial a ideia da grande virada dramática -, eles acabaram por ser vistos, compreendidos, catalogados dentro desse mesmo escaninho. Eis, afinal, o homem um pouco ingênuo, um tanto marqueteiro, que se filia obsessivamente a um sucesso e tenta repetir sua fórmula, quase sempre canhestramente, em tudo o que faz. O que é interessante é perceber que, em certa medida, nem tudo isso é mentira, e boa parte do que se critica no cineasta é de onde ele tira sua força.

Comecemos pela ingenuidade. Os filmes de Shyamalan funcionam, em geral, como autênticos exercícios de fé. Seus protagonistas são pessoas atormentadas que precisam superar não apenas traumas reais, mas questões morais - ou, por assim dizer, espirituais - para salvar a si mesmos e, de vez em quando, o resto do mundo. Do psicanalista que deixou seu paciente morrer em O Sexto Sentido às crianças sem pai de A Visita, temos uma coleção de personagens com famílias desestruturadas e crenças destruídas que precisam - em sua "jornada do herói" - reencontrar o amor e a união.

Não é à toa, por exemplo, que a simples reestruturação familiar aparece como a salvação da humanidade em boa parte de seus filmes: é ela que vai impedir a invasão alienígena em Sinais, a revolta do meio-ambiente em Fim dos Tempos, a desintegração do planeta em A Dama na Água. Em suma, não importa a razão macro pela qual o mundo esteja acabando (e para Shyamalan o mundo claramente está acabando), será somente através dos valores micros, íntimos, autenticamente humanos que ele poderá ser restaurado. Eu posso ser uma cética militante, mas confesso que tamanha crença sempre me deixa um pouco comovida.

Talvez Shyamalan seja o cineasta que mais conseguiu transportar a temática da espiritualidade, cara a vários diretores europeus, para o coração de Hollywood - um espaço cada vez mais cínico -, retomando consigo certos conceitos do cinema de antigamente, que servem perfeitamente a suas intenções.

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Por isso mesmo, o cinema de Shyamalan é o mais claro e direto possível. Enquanto os filmes atuais muitas vezes são construídos a partir de uma lógica de ritmo e desorientação, como se estivéssemos numa montanha-russa da Disney, para Shyamalan tudo tem que ser pensado a partir da lógica do significado. A junção de uma imagem com outra deve construir não um frenesi, mas um discurso. É por isso que nos filmes dele - com a possível exceção do último - não há muito espaço para joguetes, piscadelas e brincadeirinhas, ao contrário da modinha atual de Deadpools e afins.

Numa obra fundada sobre uma espécie de salvação espiritual da humanidade, nada mais natural que seus filmes aproximem-se do gênero do horror, que, como todos sabem, tem seu sucesso exatamente ao colocar o homem em constante provação. Dessa dualidade entre uma cinematografia que parece o tempo todo apontar para a luz, mas que é construída como um eterno caminho pelas sombras, Shyamalan consegue extrair os momentos mais potentes de seu cinema.

Ao contrário do que superficialmente se dá a entender, o cineasta não gosta muito de se repetir, e por isso a cada filme varia o subgênero. Sua obra passa pelo drama sobrenatural (O Sexto Sentido), pelo filme de super-herói (Corpo Fechado), pela ficção alienígena (Sinais), pela fábula (A Dama na Água) e até mesmo pela moda recente dos found footages (A Visita). Em todos os filmes ele repete elementos clássicos do gênero, em especial o domínio absoluto da lógica do suspense. São filmes construídos sobre a égide da emoção e do medo, tanto o dos personagens quanto o do espectador.

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Assim, ao trabalhar obsessivamente as mesmas questões, utilizando-se das regras e artimanhas de um gênero que lhe parece apropriado, Shyamalan confirma-se não como um picareta, mas um autor com escrita e identidade muito próprias. Não é por acaso que os filmes que ele teve menos controle criativo (O Último Mestre do Ar e Depois da Terra) são os mais fracos de sua carreira, ainda que ecoem as mesmas questões.

Numa era cada vez mais tomada por adaptações e "sucessos garantidos", como as milhões de adaptações dos quadrinhos da Marvel e da DC Comics, Shyamalan é um dos poucos que trabalha com um conteúdo original, escrito por ele mesmo. É, enfim, um writer-director. Mas, diferente de outros do mesmo porte, que alcançaram enorme sucesso de crítica (Quentin Tarantino e Wes Anderson, por exemplo), a identidade de Shyamalan não está exatamente na aparência visual marcante, e um tanto narcisista, de suas obras, mas no que elas têm a dizer e como são construídas para isso. É nesse sentido um cinema mais delicado, mais sutil e mais dificilmente reconhecível como o de um verdadeiro artista.

M. Night Shyamalan é, enfim, uma das presenças mais potentes do cinema americano atual exatamente porque não parece ter nada a ver com o cinema americano atual. Ele tenta - e, dada a quantidade de filmes feitos, consegue - se colocar em um jogo do qual, não importa o que aconteça, sempre sairá perdedor. O mundo, e o cinema, podem estar caminhando inexoravelmente para uma era onde os prazeres sensoriais estejam suplantando os valores espirituais, mas o cineasta segue, sem pestanejar, em sua luta quixotesca a favor da ressurreição dos sentimentos.

Eu, que estou bem distante de ser uma pessoa sentimental, mas que sou a favor de todas as lutas quixotescas, não posso deixar de admirar um cineasta que segue na contramão de tudo e de todos, sem importar-se por um segundo se a crítica e as modinhas tentam fazê-lo desistir.

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