Filmes

Crítica

A Hora e a Vez de Augusto Matraga | Crítica

Western pururuca leva o cinema brasileiro às veredas de Guimarães Rosa

26.09.2015, às 18H14.
Atualizada em 08.11.2016, ÀS 05H00

Bangue-bangue à mineira, decalcado da prosa de João Guimarães Rosa (1908-1967), A Hora e a Vez de Augusto Matraga bate na tela grande menos com o peso de tragédia sertaneja e mais com a agilidade (e fluidez) de um faroeste latino-americano: com cheiro de pólvora, tensão à cada bala disparada e um anti-herói incomum à fauna audiovisual do país. Rodada em Diamantina (MG), a produção chegou quinta-feira às salas de exibição depois de uma espera de quase quatro anos a partir de sua primeira projeção (leia-se consagração) pública.

Em outubro de 2011, o longa-metragem – o primeiro da carreira do niteroiense Vinícius Coimbra - foi apresentado no Festival do Rio, de onde saiu com o troféu Redentor em cinco categorias, incluindo a de melhor filme, júri popular e ator, para João Miguel, que é sua força motriz. A demora se deu pela falta de dinheiro para custear um lançamento à altura de um projeto com fôlego para reviver uma tradição que o cinema brasileiro há tempos deixou para trás: o dos westerns regionais. O filão tem até apelido: western feijoada. Mas Matraga, com sua mineirice, está mais para western à pururuca. 

Nos anos 1960 e 70, fitas inspiradas pela cartilha clássica do faroeste americano, como Gregório 38 (1969) e Rogo a Deus e Mando Bala (1972), Pedro Canhoto, o Vingador Erótico (1973), trouxeram o vocabulário dos filmes de caubói para o Brasil, buscando imprimir malandragem e sensualidade locais ao Velho Oeste, recriado na geografia nacional. Apesar da essência caça-níqueis, esses longas testaram a potência épica do cinema nacional, provando ter lugar para pistoleiros estilizados em nosso imaginário. Corriam em paralelo às feijoadas os chamados Nordesterns ou filmes de cangaço, gerados a partir da memória do banditismo social, que geraram sucessos de bilheteria como O Cangaceiro (1953) e cults como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964).  

 Azeitado em suas cenas de ação, sobretudo pela mira certeira do fotógrafo Lula Carvalho (o mesmo de Narcos), o Matraga de Vinícius Coimbra é filho bastardo dessas duas correntes, com paternidade atribuída à literatura de Guimarães Rosa. Sua trama vem de um dos contos do livro Sagarana, de 1946, e batizado originalmente de A Hora e Vez... O enredo é concentrado no périplo de transformação pelo qual passa um poderoso fazendeiro com fama de coronel, Nhô Augusto Esteves, ao ser atraiçoado em uma tocaia e deixado à beira da Morte. Salvo por uma família de negros devotos a Deus, Augusto é salvo e se reinventa como um beato, fragilizado em seu respeito pelo Senhor, deixando para trás seu passado de ira e de brutalidade, expressas em maldades com seus funcionários, devedores, credores e mesmo familiares. Mas a violência não ficará longa de Augusto por muito tempo, uma vez que uma falange de jagunços, chefiada pelo matador Joãzinho Bem-Bem vai cruzar seu caminho, farejando seu desejo de matar.

Este argumento foi usado pelo cinema em 1965 pelo diretor Roberto Santos, o que rendeu um clássico (homônimo), estrelado por Leonardo Villar  e respeitado por sua reflexão social, à sombra das discussões sobre luta de classes típicas da década de 1960. A versão de Coimbra deixa o tom político de lado e abraça uma perspectiva mais existencial: não se trata de um filme sobre a exploração do pobre pelo fazendeiro em um Brasil rural quase feudalista, como se via no filme de Santos, trata-se mais de um rito de passagem espiritual e moral, no qual um homem é capaz de rever seus erros e rever suas virtudes, sem perder sua essência violenta, bravia, selvagem. 

Sob a batuta de Coimbra, João Miguel atua de modo a criar um Matraga longe de caricaturas sertanejas mineiras, fugindo até dos arquétipos trágicos dos aristocratas caídos. O Matraga de João Miguel é um homem de personalidade tridimensional: duro na rua, mas apaixonado por uma esposa que não se furta a traí-lo. Cruel para uns, é fiel e generoso a outros. É uma figura cheia de contradições, sem dúvidas apenas em sua certeza de atirar na hora certa. No momento em que Matraga é agredido ao limite da tolerância e largado para morrer, o ator baiano o converte, pelas vias da fraqueza, em um sujeito traumatizado e refém da Fé, dando credibilidade a essa mudança. 

Uma nova mudança vai ocorrer quando a figura de Joãozinho Bem-Bem chega, na pele de José Wilker (1946-2014), numa atuação irrepreensível, capaz de evocar as figuras vividas pelo ator Lee Van Cleef nos faroestes de Sergio Leone. A entrada de Bem-Bem dá ao longa de Coimbra espaço para cenas de combate perfumadas de chumbo, capazes de elevar a temperatura do filme e mostrar que nem só de Django Livre vive o western. Numa analogia com o histórico nacional dos longas e séries sobre o universo de Guimarães Rosa,  Matraga pode frustrar pela falta de experimentação de linguagem e narrativa. Seu classicismo é expresso já nas primeiras cenas e ele fica até o fim. Mas é classicismo feito com elegância, eficiência e com o esforço de fazer dar a seu protagonista uma dimensão anti-heróica necessária a um país pouco afeito a imagem do justiceiro, do vigilante, do vingador.

Nota do Crítico
Bom
A Hora e a Vez de Augusto Matraga
A Hora e a Vez de Augusto Matraga
A Hora e a Vez de Augusto Matraga
A Hora e a Vez de Augusto Matraga

Ano: 2011

País: Brasil

Classificação: 14 anos

Duração: 110 minutos min

Direção: Vinicius Coimbra

Roteiro: Manuela Dias, Vinicius Coimbra

Elenco: João Miguel, José Wilker, Chico Anysio, Irandhir Santos, José Dumont, Júlio Andrade, Ivan de Almeida

Onde assistir:
Oferecido por

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.