Com quase três de ininterrupta falação, suportável e prazerosa graças às sacadas de humor negro nos diálogos, Sieranevada, do romeno Cristi Puiu, deu a largada para a disputa pela Palma de Ouro no 69° Festival de Cannes numa projeção que rachou a plateia de 1,2 mil jornalistas ao meio: parte debandou já nos primeiros 40 minutos, parte aplaudiu acalorada, por dois minutos seguidos, ao fim da exibição.
Com menções ao atentado terrorista contra o jornal Charlie Hebdo diluídas em meio a uma bateção de boca entre parentes, a produção deixou evidente, já em sua meia-hora inicial, porque foi o primeiro dos 21 concorrentes a ser projetado. A menção politica ao terror - que se estende também por uma discussão sobre a explosão das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, nos EUA, e sobre diferentes massacres cometidos durante o jugo comunista na Europa – seria polêmica o suficiente para manter o longa-metragem vivo (e acalorado) na boca dos críticos. Mais do que isso, contudo, pesou na decisão da curadoria: trata-se de um exemplar do movimento estético mais consistente que o próprio Festival de Cannes revelou nos últimos 15 anos: a chamada Primavera Romena. E foi Puiu quem lhe deu o pontapé inicial, há cerca de uma década, ao exibir aqui A Morte do Senhor Lazarescu, em 2005.
O conceito da Primavera é: usar uma estética desdramatizada (poucas ações), em locações reais, filmadas com um olhar próximo do documentário, onde as tramas são sempre mote para que se aborde a decadência politica (e moral) da Romênia a partir dos escombros sociais deixados como herança pelo Comunismo. E isso sempre (ou quase sempre) é retratado com humor dos mais ácidos. Desse projeto estético nasceram filmes cultuados como 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, ganhador da Palma de Ouro em 2007, e Instinto Materno, laureado com o Urso de Ouro do Festival de Berlim em 2013. Fiel à linhagem que inaugurou, Puiu faz de Sieranevada uma espécie de sumula viva (e quente) dos mandamentos usados por seus conterrâneos adotando a família como alvo.
Mesmo em seus momentos mais vagarosos, onde tudo se reduz a conversas à mesa durante um almoço, o longa contagia pela habilidade de reproduzir com veracidade situações mundanas do dia a dia da vida familiar, despertando identificação pelo corriqueiro, pelo doméstico. O enredo é um fiapo: Lary (Mimi Branescu) vai se reunir com seus irmãos, primos e tia para celebrar a honra do pai morto. Entre pratadas de polenta com frango frito, segredos de seu pai e de um tio trapalhão são revelados ao mesmo tempo em que uma jovem visita agoniza por excesso de álcool (e outras coisinhas).
Trocas de acusações e verdades dolorosas se alternam com piadas e comentários sobre a falta de perspectiva econômica de um país que parece parado no tempo em sua saúde bancária – mas que está a anos luz no futuro em matéria de sofisticação cinematográfica. Puiu poderia apenas ser um pouquinho menos arrastado em sua narrativa.