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Noite Sem Fim | A primeira vez por trás das câmeras

Visitamos o set do novo filme de Liam Neeson e conversamos com o diretor Jaume Collet-Serra e o ator/músico Common, vencedor do Oscar 2015

01.05.2015, às 14H14.
Atualizada em 14.11.2016, ÀS 23H02

Novembro de 2013.

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A minha primeira viagem internacional foi um misto de sensações. Do primeiro passo para entrar no avião com destino a Nova York até a chegada ao aeroporto JFK. Nada passava pela minha cabeça se não o deslumbramento de finalmente conhecer os Estados Unidos. Por outro lado, quando cheguei ao set de filmagem de Noite Sem Fim, novo filme de Liam Neeson, uma sensação estranha me atacou. Não havia glamour, nem nada do estrelismo de Hollywood. Onde estavam os trailers e as estrelas? Nada disso. E não era por acaso. O diretor Jaume Collet Serra, parceiro de Neeson em Sem Escalas e Desconhecido, queria exatamente isso. "O realismo e o clima do subúrbio nova-iorquino", como ele me diria mais tarde. Tremendo em um frio de 10 graus negativos, sem uma vestimenta adequada ou luvas, eu não podia negar que aquele era o ambiente ideal para reproduzir as tensas sequências de ação que viriam a seguir.

O set escolhido foi um galpão em Nova Jersey. Com um pé-direito de quase 15 metros, o local parecia um terreno de obra abandonada. Logo na minha frente surgia uma gigantesca cortina preta. Algo importante se escondia ali. Gritos e algumas luzes quebravam a escuridão do pano. Sem que os produtores soubessem, fui de mansinho abrir uma fresta da cortina e me deparei com um prédio cenográfico e uma gigantesca equipe coordenando a construção da próxima cena a ser filmada. Não era para eu ter visto isso naquele momento, e como não podia ser diferente, um membro da produção me chamou atenção e eu voltei ao grupo de jornalistas. “Vamos entrar agora no set, eles estão gravando uma cena de invasão a um apartamento que está completamente queimado. Liam Neeson e Common estão por lá”, disse o assessor do estúdio.

Dois copos longos de café depois, cruzamos a cortina preta e nos esgueiramos pela lateral do prédio falso. Com o bloco de notas na mão anotando os detalhes do ambiente, fiquei para trás. Naquele momento eu não sabia, mas por pura sorte, o grito de “corta” veio dos fundos do galpão e uma movimentação entranha começou logo atrás de mim. Apressei-me para reencontrar o grupo, mas não deu tempo. “Com licença”, pediu uma voz grossa sobre a minha cabeça. Virei falando “claro" e olhei reto. Avistei apenas uma camiseta preta. Olhei para cima e vi Liam Neeson. Maquiado com cortes no rosto e uma sujeira leve nas roupas marrons que usava. Acompanhado por dois outros homens, o ator entrou em uma pequena cabana térmica mais a frente. Passado o choque de ver Qui-Gon Jin na minha frente, me dei conta de onde estava. Não faltava mais nada para eu me sentir dentro de um filme.

Ao chegar na parte de trás do set, o lado técnico do cinema apareceu. Pelo menos quinze pessoas corriam de um lado pro outro carregando equipamentos em uma velocidade incompatível com o frio do lugar. Com quase 30 minutos dentro do galpão, meus dedos que seguravam o bloco de notas e a caneta já não estavam vivos. Assim como minhas orelhas e nariz. No centro da confusão estava um sujeito de cabelos pretos mal penteados, com apenas um casaco grosso aberto e um cachecol surrado em volta do pescoço. Jaume Collet-Serra, o diretor. O visual desleixado combina com o jeito dele organizar a equipe. Falando baixo e sempre cumprimentando quem passa por perto, o espanhol foi o primeiro a conversar comigo. Aproveitando o intervalo entre as gravações da cena, ele deixou sua tradicional cadeira de madeira e, para o meu espanto, tirou as luvas. Não perguntei, mas ele olhou meu rosto e viu a expressão de “por que você está fazendo isso?”. “Estava muito quente ali ao lado dos monitores. Eles colocaram aquecedores potentes”, disse ele com um sorriso.

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A conversa começou com o mais simples dos questionamentos. Afinal, aquele era o terceiro projeto Jaume-Liam com uma pegada policial, gênero que ele se especializou nos últimos anos. “Trabalhar com Liam é uma das melhores coisas que essa indústria me proporcionou. Ele está há anos no mercado, lida com todas as burocracias há muito tempo e ainda assim é um cavalheiro nas gravações mais difíceis. Hoje, por exemplo, acordamos às 4 horas da manhã para vir para cá e ele está aí na ativa, não reclamou ou deu sinal de cansaço até agora. Vale lembrar que ele tem 62 anos”, contou. Mas deve haver alguma coisa diferente que o atraiu a esse projeto”, perguntei em seguida. “A tensão que você transmite nos suspenses anteriores parece não se encaixar no ambiente que estamos hoje”.

Collet-Serra consente com o questionamento e entrega que “aqui é a hora de mostrarmos mais perseguições e uma história de redenção mesclada a uma trama familiar”. “O filme inteiro se passa durante uma noite, então há uma urgência na fotografia e, claro, nas perseguições que envolvem os personagens principais - Liam, Joel (Kinnaman) e Common estão entre eles. O que eu quis fazer foi transmitir essa mistura com o apoio desse ótimo elenco que ainda conta com Ed Harris e do trabalho de produção impecável nos momentos das perseguições. Nós paramos um punhado de ruas de Nova York ontem a noite para explodir meia dúzia de carros. Vou mostrar para vocês depois nos monitores. Ficou ótimo”, disse. “Bom”, pensei comigo. Mas ainda queria saber o motivo daquela nova empreitada com Neeson. A resposta não me convenceu, pois não havia muito sentido naquilo. “Você não mexeu no roteiro desse filme. Ele já veio pronto, certo? Então como é colocar sua visão no projeto? Há espaço para isso em um mercado tão enlatado como Hollywood?”.

O espanhol fez uma careta. Talvez a palavra “enlatado” não tenha sido a melhor escolha, verdade. No entanto, parei para pensar e era difícil encontrar algo mais adequado naquele momento. “Não é simples”, disse com um sorriso que em parte concordava com a minha escolha de palavras. “Mas posso dizer que para mim existe sim um desafio nesse filme. O roteiro é realmente interessante e há o que explorar no meu potencial como diretor. Eu quero fazer algo mais focado na relação entre pai (Neeson) e filho (Kinamann), sem perder o suspense da necessidade de cumprir a missão. É um estilo de filme a que assisti muito na década de 1980 e gosto sempre de resgatar. Prometo que há algo novo aqui”, disse. Sorrio e tento mudar o rumo da conversa. “Liam é a representação do velho matador no filme, certo? Common entra como o cara que precisa abatê-lo e também como um símbolo da modernidade. Cheio de armas potentes e tudo mais. Há também essa relação explícita na trama? Como isso é abordado?”.

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É bem por aí mesmo, pois há uma sensação de mudança dos tempos. É a ‘última’ missão do personagem de Liam, então ter um combatente mais moderno dá uma referência boa dos novos tempos. E Common consegue incorporar isso bem, sem parecer um cara dependente dos seus equipamentos, mas sim um sujeito que pensa de uma maneira diferente de verdade”. Nesse momento, os mesmos dois rapazes que acompanharam Neeson quando eu estava prestes a encontrar Jaume aparecem. Logo depois deles surge um cara de toca, pele negra e com quase dois metros de altura. “E olha só, ali está ele”, disse o diretor apontando para Common.

A chegada do ator foi a deixa para a assessora de imprensa do estúdio encaminhar Collet-Serra para outros jornalistas e deixar eu e mais alguns falar com Common. Tal qual um grupo de crianças seguindo a tia da escola, éramos quatro jornalistas seguindo a moça que nos daria autorização para falar com o músico/ator. Ele estava a alguns metros à nossa frente, mas não havia permissão para perguntar algo ainda. Naquele momento percebi que há todo um “ar” de extremo cuidado ao falar com atores no set. Alguns sequer dão entrevistas, pois preferem se concentrar no trabalho. Liam Neeson é um caso. Apesar de ser conhecido pela educação fina, ele não gosta de falar nas filmagens. Imaginei que Common seria mais um desses e eu terminaria meu primeiro set visit sem falar com um ator. Felizmente eu estava enganado. O próprio Common nos chamou. “Vamos ali”, disse apontando para a mesa de café mais distante do set. “Está frio, bom que todos podem pegar um café ou um chá”, falou e logo quebrou o início de constrangimento que a espera poderia causar.

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Eu não teria muito tempo para perguntas. Não estava mais sozinho. Iniciei a conversa perguntando sobre o clima soturno que tínhamos ali no set. “Jaume quer dar esse teor mais urbano ao filme, não é? Eu acho isso ótimo, pois mesmo longe da cidade em si conseguimos nos aclimatar às cenas. O roteiro como um todo passa essa urgência e as cenas de ação, caras, as cenas de ação ótimas”, disse. “O seu personagem é um cara mais jovem, mais moderno. Algo como um agente secreto mais descolado? Você é o real contraponto do Liam nesse filme?”. Depois de um gole de café, Common me deu a primeira negativa da visita. “Não acredito que eu seja o contraponto. Ed Harris está mais para esse papel. Eu sou sim um matador como ele, mas sirvo mais como um símbolo da modernidade que ele não acompanhou. Uma referência do passar dos tempos, entende? É uma evolução natural surgir um cara como o meu personagem, mas não acredito que ele seja um inimigo real. Apenas esse símbolo que é pontual para a construção do protagonista.

A opinião dele não só me surpreendeu pela veemência, mas também pela forma como ele enxergou o filme como um todo - não apenas um longa de ação, carros e explosões. Há uma simbologia clara e evidente nos textos, e quem os recita em cena precisa ter esse significado bem entendido. Na continuação da conversa, Common falou que “trabalhar com Neeson é incrível e que esse seria um dos filmes de ação mais interessantes do próximo ano”. Entre essa e outras respostas, porém, o que me mais chamou atenção foram duas coisas: a opinião forte sobre o subtexto que o projeto todo deveria transmitir (a relação pai e filho, o velho contra o novo) e, claro, a desmitificação da “estrela de Hollywood”. Common estava conversando comigo e outros jornalistas como colegas conversam sobre cinema. Ninguém era maior que ninguém. Na verdade era sim. Common dava dois de mim. Mas você entendeu…

A visita chegou ao fim com Collet-Serra mostrando algumas cenas já finalizadas e dois takes feitos na nossa frente. Entre um “ação” e outro “corta” não passou nem um minuto. A magia do cinema estava ocorrendo ali na minha frente, mas não era deslumbrante como imaginei ao chegar em Nova York. Ela, na verdade, é moldada de acordo com o objetivo final do filme. Se é um épico que gravaremos, as filmagens serão épicas - tanto do lado bom quanto do lado ruim. Se é um suspense policial, as filmagens serão tensas e penosas. A visita ao set de Uma Noite Sem Fim me mostrou que fazer um filme requer uma dose cavalar de dedicação (como vi em cada um dos assistentes de produção), cuidado (os pormenores do diretor) e estudo (as observações de Common). “Cinema não é sobre efeitos”, pensei alto. Peguei a caneta e escrevi no bloco que ainda guardo até hoje como lembrança. ‘Cinema é muito mais que efeitos especiais e computação gráfica, ele é sobre pessoas, estejam elas por dentro ou na frente da tela’.

Noite Sem Fim já está em cartaz nos cinemas brasileiros - leia a nossa crítica.

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