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Crítica

Vazante | Crítica

Em drama de escravidão, Daniela Thomas não consegue se emancipar do olhar estetizante

08.11.2017, às 15H00.
Atualizada em 08.11.2017, ÀS 16H02

Passada a recepção cordial no Festival de Berlim, Vazante, drama histórico sobre escravidão nas Minas Gerais do século 19, passou em exibições no Brasil a ser questionado por seu olhar sobre a figura do negro. O tema obviamente já levantaria controvérsias mas Vazante se presta a elas: a insuficiência dá o tom do filme, abrindo lacunas que no fim convidam as reivindicações de quem se viu mal representado.

Essa insuficiência parte, antes de mais nada, da posição que a diretora Daniela Thomas toma diante do que filma. Conhecida pelos longas-metragens dirigidos em parceria com Walter Salles desde Terra Estrangeira, ela não consegue neste trabalho solo se emancipar do olhar acima de tudo estetizante que pontuou sua produção ao longo da Retomada. Da escolha pela fotografia em preto-e-branco aos planos sem foco, que borram contornos em nome do alto contraste de cor, Vazante se oferece como uma experiência pictórica, antes de ser uma experiência política.

Na trama, depois de perder sua esposa no parto, um tropeiro português vê o dia a dia da sua fazenda entrar em desarranjo. Contar mais do que isso já começa a estragar as poucas viradas de Vazante, cuja dramaturgia é muito básica, na forma como estabelece as relações de classe e afeto que se revelarão manifestas no fim, diante do protagonista.

O filme não dá voz aos negros? Não rompe com olhares estabelecidos de representação? Em debates, Daniela Thomas defende que adotou no filme um ponto de vista que fosse condizente com as estruturas sociais da época, mas cabe a todo artista - que afinal ocupa uma posição de tribuna e sabe ou deveria saber do potencial político dos seus gestos - observar as coisas com os olhos do seu próprio tempo. Do contrário, qual o potencial de sua obra? O que um filme como Vazante, por sincero que seja, tem a oferecer como visita ao passado se não recontextualizá-lo?

O que vemos na tela é uma acomodação desse potencial. Aos negros se reserva, além de uma posição estética no alto contraste, os papéis tradicionais de motores da trama; afinal, na sociedade do privilégio que historicamente acompanha a desigualdade no Brasil, são os escravos que tocam a fazenda, que assumem as broncas, que guardam seus segredos. Em Vazante, os personagens negros que despontam como possíveis protagonistas saem pela tangente (o suicídio, a fuga) porque o filme reconhece neles antes de tudo seu caráter trágico, o que permite, oportunamente, tratar como protagonistas de fato o senhor da fazenda e a jovem sinhá branca - a quem cabe toda a aproximação da câmera, os close-ups cuidadosos, os tempos fracos, as "sensibilidades".

Daniela Thomas filma a menina Luana Nastas com um afeto raro, sabe ver a expressividade dos seus grandes olhos claros e buscar neles uma empatia, uma ligação com o espectador, mas cada escolha implica uma renúncia e Nastas, isolada na fazenda, se isola também no filme. E então uma obra sobre questões de privilégio acaba mesmo reproduzindo um comportamento similar. Talvez seja injusto reclamar que Vazante não contemple todos os olhares, porque às vezes são as lacunas em si que se tornam portas abertas para a nossa entrada, e afinal arte não é assembleia. Ainda assim, o que sobra de Vazante ao final, além do esperado lamento da nossa repetida tragédia?

Nota do Crítico
Regular
Vazante
Vazante
Vazante
Vazante

Ano: 2016

País: Brasil

Classificação: 14 anos

Duração: 107 min

Direção: Daniela Thomas

Roteiro: Daniela Thomas, Beto Amaral

Elenco: Adriano Carvalho, Luana Nastas, Sandra Corveloni, Juliana Carneiro da Cunha

Onde assistir:
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