Filmes

Entrevista

"As Mil e Uma Noites é tropicalista", diz diretor português Miguel Gomes sobre sua trilogia de 6 horas de duração

"O Brasil tem a Globo e os Estados Unidos, Hollywood. Portugal, nem um nem outro"

06.11.2015, às 15H02.
Atualizada em 25.11.2016, ÀS 18H04

Ser o responsável por um filme de seis horas de duração – ainda que fatiado em três volumes – com base em uma narrativa mítica com DNA árabe e com foco na crise econômica mundial fez o português Miguel Gomes entrar para a História do Cinema, não apenas pelo fôlego, mas pela ousadia de arriscar uma metragem dessas em uma nação onde a produção audiovisual passa a léguas dos parâmetros industriais da mídia. Esse projeto tríptico se chama As Mil e Uma Noites e foi lançado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, em maio, sendo tachado como um dos maiores acontecimentos midiáticos (e autorais) dos últimos anos no cinema. A estreia no Brasil está marcada para o dia 12 de novembro, mas teve antes uma passagem pela seleção itinerante da 39ª Mostra de São Paulo em telas cariocas.

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Gomes é um ex-crítico que ganhou respeito como diretor ao lançar Aquele Querido Mês de Agosto no Festival de Cannes de 2008, coletando relatos sobre as aldeias do interior de Portugal ligadas às tradições da música popular. Quatro anos depois, assombrou o planisfério cinéfilo com um delirante ensaio (disfarçado de love story) sobre o colonialismo lusitano: Tabu, laureado com o Troféu Alfred Bauer no Festival de Berlim de 2012, onde foi considerado um dos maiores filmes europeus das últimas décadas.

Nos Estados Unidos existe Hollywood. O Brasil tem a Globo. Portugal não tem nem ou nem outro e nem qualquer agente de mercado que compense os produtores com dinheiro. No nosso mercado interno, é difícil um filme português fazer lucro, mas, mesmo assim, longas são feitos lá, ainda que o cinema mundial assuma o prejuízo por eles. Por isso, sem ter a expectativa de dar retorno, os nossos filmes são mais livres e nossos diretores têm liberdade para fazerem o que quiserem. É ruim ser pobre, mas há suas vantagens, como, por exemplo, poder filmar de um jeito mais pessoal, atento à realidade. Cinema não é vida. Cinema é algo que nos fala sobre a vida, como um sonho”, disse o diretor de passagem pelo Rio de Janeiro para a exibição dos três longas-metragens (batizados respectivamente de O InquietoO Isolado e O Encantado). 

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As Mil e Uma Noites 

Juntos, O InquietoO Isolado e O Encantado deram 32 mil pagantes em Portugal, mas este número aumenta quando estuda-se a expansão desses filmes pelos mercados globais. Cada volume acompanha os desdobramentos das fabulações de Xerazade (vivida pela beldade Crista Alfaiate) com base nos escombros da civilização portuguesa, resultantes da crise. Considerado o melhor, o episódio do meio será o representante de Portugal na disputa ao Oscar de filme estrangeiro.

Xerazade representa uma máquina de transformar a realidade em mito”, diz Gomes. “Há, nos filmes, a história de Simão, um assassino fugitivo da Polícia que foi recebido pelo povo com um cartaz a dizer: “Simão é nosso herói”. Ali, ele se mitificou aos olhos do povo. Os fatos passam por uma dimensão de lenda e depois de mito. Os fatos reais estão presentes mesmo na ficção, pois a imaginação é um produto da experiência de viver num determinado tempo”.

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Com uma narrativa que mistura farsa, documentário, comédia e épico, As Mil e Uma Noites foi fruto de um trabalho de 14 meses, que incluía pesquisa, investigação, redação de ideias e filmagens com o aporte de uma equipe de três jornalistas que apontavam para o cineasta fatos ocorridos em diversos pontos de Portugal, muitos deles ligados à crise. Nisso surgiram plots na órbita do absurdo – mas de riso fácil - como a história do galo que fala e do caçador de vespas às voltas com uma praga bíblica.

“Em momentos de crises como esta que enfrentamos, parece-me cruel mostrar uma realidade dramática de modo dramático, triste. A presença de humor livra o espectador de ser submetido às chantagens emocionais do drama. É importante haver no cinema um olhar que não traia o público nem os personagens por assumir certa superioridade e distanciamento”, diz Gomes, que construiu sua fábula metafísica sobre as excentricidades do mundo em falência financeira com o apoio de produtores da França, da Suíça e da Alemanha. “Peguei todo o dinheiro que tínhamos e tentei filmar o máximo possível, em vez de me preocupar em gastar fazendo tomadas belas aqui e ali”, diz o diretor, que fica no Brasil até domingo.

A riqueza de As Mil e Uma Noites deveria ser a sua diversidade, que se expressa à maneira de um formato de coletânea de contos sobre Portugal em crise. Usamos um material noticioso e não tínhamos um roteiro formal, fechado. Filmamos a partir de um processo contínuo de investigação, vivo, invertendo os modelos industriais do cinema, fazendo algo que só há no topo da cadeia do audiovisual, vide O Senhor dos Anéis ou Star Warsque são trilogias. Se Tabu era um filme bossa nova, em sua elegância, O InquietoO Isolado e O Encantado são tropicalistas, porque são uma espécie de explosão em reação aos sintomas do nosso tempo. O primeiro tem uma relação mais direta com a notícia. O segundo é mais abstrato. E o terceiro é uma enciclopédia de tipos. Mas os três foram filmados sem um regulamento. Cada volume municiava a si mesmo com o que eu busquei ao olhar à realidade. Mas não foi racional. É frutos dos meus desejos. É minha reação à crise”. 

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