Filmes

Entrevista

Divertida Mente | Pete Docter e Jonas Rivera falam sobre crise, tecnologia e as possibilidades da animação

Diretor e produtor conversaram com o Omelete em Buenos Aires

21.06.2015, às 19H53.
Atualizada em 21.06.2015, ÀS 20H35

Buenos Aires amanheceu nublada e eu nervosa. Na minha primeira passagem pela Argentina, acordei às 4h30 da madrugada em pânico: em poucas horas entrevistaria Pete Docter Jonas Rivera, o diretor e o produtor de Divertida Mente (Inside Out), e não conseguia carregar meu celular/gravador (as tomadas hermanas são cheias de peculiaridades). Abro todas as portas e gavetas até encontrar um santo adaptador. O frio da barriga, porém, continuava. Entrevistar os responsáveis por Up - Altas Aventuras (2009) não era só uma grande honra, mas uma grande responsabilidade. Será que eu daria conta?

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O medo, contudo, foi embora assim que entrei na sala reservada para a entrevista. A dupla me recebeu sorridente e começou a conversa elogiando meu cinto (que tem uma fivela grande e dourada e uma raposa em alto-relevo). Era como encontrar dois amigos que gostam tanto de cinema e animação quanto você. Foram 18 minutos para falar sobre Divertida Mente, o filme que marca a volta da boa e velha Pixar, o desenvolvimento tecnológico da animação por computação gráfica, a participação dos dubladores, as adaptações em live-action dos clássicos animados da Disney e, é claro, da crise e do futuro do estúdio de Toy Story.

Leia a crítica de Divertida Mente

Gostaria de começar com o básico. Como vocês tiveram a ideia para Divertida Mente? Como esse filme nasceu?
PETE DOCTER
: Nasceu enquanto eu via minha filha crescer. Vendo-a mudar. Ela era uma criança feliz e cheia de energia e então ficou um pouco mais quieta e eu fiquei "ah, eu quero mater a criancinha, gosto da criança feliz, o que aconteceu com ela, o que está passando na cabeça dela?" . E aí, pensando em emoções, me parece algo que a animação faz muito bem, certo? Personagens caricatos com opiniões fortes, que são bastante emocionais sobre as coisas e se estapeiam pela melhor maneira de fazer algo. Desse conceito básico foram três anos desenvolvendo os detalhes. Quem é essa criança? O que está acontecendo na vida dela? Uma coisa que descobrimos logo no início é quanto maior o contraste entre interno e externo, mais divertido fica. Do lado de fora são poucas coisas, nada de significante, mas dentro é uma loucura, mesmo para escolher entre fruta ou donut para o café da manhã. Dentro é o caos, então isso é divertido.

JONAS RIVERA: Dessa forma poderia ser bem engraçado, não apenas emocional.

Como foi o processo de pesquisa para criar o visual de Divertida Mente. Em Up, por exemplo, os animadores visitaram locações para buscar inspiração, mas você não pode fazer isso nesse caso (risos)... Então como vocês tomaram decisões simples, mas importantes, como a textura das emoções?
DOCTER: Muito disso foi uma combinação de pesquisa e de intuição. Seria ótimo se conseguíssemos uma forma de fazer com que esses personagens parecessem com como sentimos nossas emoções. E chegamos a essa ideia de partículas em movimento, quase como energia, que pareceu muito certa. É muito diferente, não é nada como fizemos antes, mas também pareceu como energia, e o quanto mais passionais eles ficavam, mais as partículas se mexem. Foi um longo processo de descobertas. Em alguns momentos, como as memórias, visitamos uma fábrica de ovos...

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RIVERA: Isso mesmo (risos). Balas de goma!

DOCTER: Produção de comida em geral, pois tem muito disso de classificar as coisas e manter o controle de tudo. Então chegamos a fazer pesquisa na vida real.

RIVERA: Mas energia foi uma grande descoberta, pois você não pode entrar na sua mente ou cérebro, mas lendo sobre isso e pesquisando surgem os conceitos de sinapses e impulsos elétricos e isso pareceu o elemento certo a se usar. Mesmo no mundo existe um brilho iluminado e as coisas são como energia comprimida, foi o que pensamos. Então isso nos levou a um caminho visual interessante.

E as emoções têm formas quase vintage, no estilo das animações dos anos 50...
DOCTER: Nós crescemos amando animação. Para mim uma das vantagens desse meio é que você pode fazer os movimentos parecerem mais explícitos do que na vida real. Em outras palavras, se estou feliz posso me mexer um pouco, mas por dentro sinto que estou pulando por todos os lados. A animação pode capturar essa essência de sentir de uma forma caricata, exagerada. E nós finalmente conseguimos chegar no mesmo nível da animação feita à mão com novas ferramentas e métodos de trabalho. Então no filme levamos o estilo de animação para um lado muito mais extremo do que já tínhamos feito.

A Pixar teve um papel essencial no desenvolvimento das animações em computação gráfica e agora estamos em um ponto onde é possível criar imagens hiper-realistas. Então como vocês evitam deixar as coisas "reais demais"?
RIVERA: É uma ótima pergunta. Você está certa, nosso meio caminha para o realismo. Luz , modelos e sombras. E nós sempre nos interessamos por caricaturas, então trabalhamos muito duro com o nosso time, técnico e artístico, para quebrar as regras da física, de como a luz se comporta. Alegria, por exemplo, é uma fonte de luz, então ela não cria sombras. Foi necessário muito trabalho e desempenho da parte técnica para não fazer o que normalmente se faz e criar uma linguagem das formas das coisas, um pouco mais cartunesco, mais elaborado. Esse é o mundo que amamos, trabalhamos com animação pois queremos fugir da realidade. Então ao invés de recriar a realidade resolvemos que faríamos uma caricatura.

O que gosto em Railey é que ela é uma garotinha que gosta coisas fofas e rosas, mas ela também gosta de hockey. Como vocês fizeram para criar essa personagem que supera os estereótipos de gênero. E por que vocês escolheram ter uma menina protagonista?
DOCTER: A escolha começou com a inspiração na minha filha, mas depois falamos com psicólogos que disseram que não existe ninguém mais socialmente consciente e antenado a outras pessoas que uma garota entre 11 e 17 anos. Então isso pareceu certo, a pesquisa estava nos dizendo isso. Para evitar cair em estereótipos, conversamos com muitas pessoas dentro da Pixar, todas as mulheres com que pudemos nos reunir, para que elas falassem sobre crescer e as dificuldades que elas enfrentaram, elas traziam histórias bem específicas e nós ouvíamos e levávamos para o filme.

RIVERA: Nós só queríamos que ela parecesse real. Não sei, não parece real ser de um jeito, ou de outro. A minha filha ama Meu Pequeno Pônei, mas também ama cavalos e quer ser uma jogadora de beisebol (risos). Entende? Então, as crianças são assim, eu acho. Tentamos fazer com que ela se parecesse uma criança de verdade.

DOCTER: Essas foram preocupações reais. Jonas trouxe muitas formas de tratar disso. Sempre que alguma das mulheres na equipe dizia, "isso é um estereótipo", nós realmente escutamos e mudamos. Então estou contente que tenha funcionado.

RIVERA: É, temos mulheres fortes e inteligentes na equipe. Lembro que Valery, uma das nossas artistas de história, ela fez esses belos desenhos em pastel que não tinham qualquer relação com o filme, mas eram imagens dela crescendo, brincando com a melhor amiga, fazendo uma apresentação, pequenas coisas como ela tentando vender coisas no bairro, eram pequenos momentos de vida que quando você olha pensa "sim, lembro da minha irmã e primas fazendo isso". Parecia real. Então tentamos colocar esses pequenos pedaços de observação na esperança de que Riley parecesse com uma pessoa real.

Uma das minhas cenas favoritas é quando Alegria esbarra em um caixa e mistura fatos e opiniões de Riley. É uma piada tão rápida, tão sutil, mas tão verdadeira... Para mim é a síntese do que faz a Pixar especial, algo tão humano que só encontra igual nas produções do estúdio Ghibli. Qual é o segredo para chegar a isso?
DOCTER: Essa piada em particular eu escrevi e acho que foi na quarta vez que reescrevi, pois nas primeiras eu sentia que ok, há algo aqui, há algo sobre fatos e opiniões...Escrevi algo e acho que era muito político, talvez religioso e as pessoas ficaram, hum, talvez você tenha ido longe demais. Então tentei algumas coisas diferentes e não estava funcionando. Finalmente consegui editar e fazer funcionar. Parte do segredo do que fazemos é nos permitir tentar múltiplas vezes e errar, "olhe, isso não funcionou, vamos tentar novamente". No final, com sorte, as coisas parecem simples e rápidas, mas é tudo uma ilusão. Há muito trabalho e mais trabalho.

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RIVERA: É verdade, a piada não acontece simplesmente, mas também é verdade que é uma observação simples.

Sim, acho que você precisa ter consciência de si mesmo, você precisa saber as suas falhas e qualidades para fazer piadas assim.
DOCTER: Sim, é isso mesmo.

Como fã de Parks and Recreation, The Office e Saturday Night Live, fiquei super empolgada com a escolha do elenco principal (Amy Poehler, Phyllis Smith, Bill Hader, Mindy Kaling e Lewis Black). O quanto essa escalação influenciou na animação, em como as emoções de Riley se comportam?
DOCTER: Foi ótimo. Influenciou muito. O que acontece é que, uma vez escolhido o elenco, o ator vem ao estúdio, lê o roteiro e nós "ohhhh" e geralmente riscamos tudo e reescrevemos as falas baseados em como eles soam. Você aprende enquanto roteirista a incorporar o que os atores trazem para os papéis. Mas Bill Hader, ele veio até a Pixar e pagou a si mesmo.

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RIVERA: Ele simplesmente apareceu (risos).

DOCTER: E ele era tão fã do que nós fazemos e, claro, nós somos fãs do que ele faz, começamos a trabalhar com ele, ele nos levou ao SNL. Pudemos sentar e vê-lo gravar toda a semana, como eles montam o programa e isso foi fascinante, aprendemos muito com isso.

RIVERA: Eles também são ótimos atores de improviso e acho que isso ajudou a fazer com que o filme não parecesse escrito. Nós escrevemos o filme, obviamente, mas eles são tão naturais e isso se encaixou no quartel-general, em que todos eles têm trabalhos e é simplesmente muito engraçado. Amy trouxa tanto para Alegria, ela trouxe uma malícia para a personagem..

DOCTER: Sim, pequenas coisas como quando Bing Bong diz "O que você está fazendo aqui?" e ela responde "É uma boa pergunta! Você quer responder isso, Tristeza?". Ela veio com essa fala na sala de gravação, há toneladas de coisas assim. Milhares de exemplos de como ela levava as coisas além. Muitas vezes você não pode usar os improvisos, mas às vezes você pode e é aí que se destaca. Como disse antes, esses filmes levam 5 anos para serem feitos, não há acidentes, tudo é planejado, quadro a quadro. Então toda a vez que você pode criar essa ilusão de espontaneidade, é isso que dá vida ao filme.

Estavámos falando sobre tornar as coisas reais e a Disney fez Alice no País das Maravilhas, Malévola, Cinderela e anunciaram diversos remakes em live-action. Vocês acham que isso é só uma decisão executiva, uma forma de reutilizar um material já existente, ou já é uma necessidade do público, que não consegue mais "consumir" essas animações antigas...
RIVERA : Não sei o que eles pensam do ponto de vista executivo, mas acho que essas histórias são tão universais e amadas. São parte da história da Disney. Acho que são apenas reinterpretações divertidas. É apenas outra forma de reintroduzir para o mundo. Cinderela é uma das minhas animações favoritas de todos os tempos. Eu amo. Mas levei meus filhos para ver o novo filme e amei. Eles amaram. Nós gostamos do filme e achamos que foi divertido. Eles não misturaram, foi engraçado, meus filhos não me perguntaram o porquê de outro filme de Cinderela. Eles simplesmente aceitaram como outra Cinderela. Essa é a minha visão sobre isso, acho que eles estão dando continuidade a essas histórias.

E para você (Pete), como animador, como é ver essa passagem de clássicos da animação para live-action?
DOCTER: Bem, quando é bem feito. Em qualquer meio você precisa trabalhar com os seus pontos fortes. No caso de Cinderela, acho que fizeram isso bem. O filme não tenta ser um desenho. Mas.... Amo as versões animadas (risos).

RIVERA: Somos da animação. É difícil imaginar algo mais sofisticado do que o que o grande Mark Davis animou em A Bela Adormecida. Mas é legal ver isso reinterpretado.

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A Pixar é conhecida por ser um estúdio voltado para o trabalho dos diretores, mas, além disso, também é um estúdio que faz muito dinheiro, sendo um dos estúdios de animação mais rentáveis. Ano passado, porém, vocês não lançaram nenhum filme e todos começaram a falar em crise. Quando você assiste Divertida Mente fica difícil pensar em crise, mas ainda assim parece que o estúdio passou por um processo de reestruturação. Vocês podem falar sobre isso?
DOCTER: Acho que de certa forma estávamos em crise. E isso não é incomum. Acho que ficamos em crise a cada filme.

RIVERA: Estamos em crise há 20 anos (risos).

DOCTER: Acho que um dos motivos do sucesso da Pixar é que eles abraçam isso. Não há escapatória. Se você faz um filme e não acaba correndo para paredes ou tem problemas, provavelmente há algo de errado com o seu filme, você não está se arriscando. São coisas que Ed Catmull, presidente da Pixar, disse. Ele é como um cientista que estuda criatividade. É muito interessante. Ele ama. Ele analisou isso e concluiu que você precisa aceitar o caos em um certo nível quando você está nesse tipo de negócio. Então, no fim, não foi um ano fácil, ter que adiar O Bom Dinossauro, mas foi uma decisão sábia e nos deu orgulho de trabalhar em um estúdio que faz isso, pois adiar um filme não é barato. Concluímos que queremos o melhor filme que podemos ter e então é muito legal podermos fazer isso.

Divertida Mente também nasceu de uma crise, quando vocês tiveram problemas com Newt, não?
RIVERA: Estávamos finalizando Up, então foi no início de 2009.

DOCTER: É, Ed fala disso no livro dele, que eles nos pediram para dar uma olhada em Newt, para ver se assumiríamos o filme. E nós assumimos, mas para deixar tudo claro jogamos outras ideias e pensamos "se todas essas são equivalentes, qual nos atrai mais?".

RIVERA: Isso é uma das coisas implementadas por Ed Catmull. Você não precisa trazer uma ideia, mas múltiplas ideias. Então estávamos brincando com ideias e estávamos empacados como Newt, lembro de falarmos "o que mais temos na manga?". Foi aí que Divertida Mente nasceu, foi quando Pete disse "e se personificássemos emoções", foi uma ideia bem simples que levamos adiante. Voltamos para o estúdio, nos reunimos com Jim Morris, Ed Catmull e John Lasseter, e explicamos brevemente a ideia e foi o suficiente. Eles apoiaram e daí passamos para o conceito. Mas voltando a Newt e O Bom Dinossauro, cada filme que fazemos, nós exibimos dentro do estúdio constantemente e recebemos notas, sugestões, de todos os departamentos. Exibimos o filme cerca de 10 vezes durante a produção e são péssimos filmes em seis ou sete dessas vezes. Nós nos damos tempo de corrigir o curso e revisar e fazer o melhor possível. Às vezes, porém, você só precisa de mais tempo... É orgânico, todos são diferentes, times diferentes, objetivos diferentes, histórias diferentes... Então ficamos tristes por ter um ano sem lançamento, pois amamos que as pessoas queiram um filme da Pixar por ano, mas, ao mesmo, tempo, quando essa decisão foi tomada, como Pete disse, é assim que a Pixar funciona. Focamos em Divertida Mente e trabalhamos para dar o nosso melhor. O Bom Dinossauro será tão bom quanto pode ser e isso pareceu certo para nós.

E quais são seus próximos projetos?
DOCTER: Estamos ajudando em diversos projetos.

RIVERA: O estúdio tem filmes em diversos estágios de produção. Pete supervisiona criativamente, eu supervisiono as produções e vamos tentar juntar mais ideias para voltar a conversar com você em 4 ou 5 anos (risos).

Espero que sim! Muito obrigada!

Divertida Mente já está em exibição nos cinemas brasileiros. Veja também o nosso veredito do filme:

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