Filmes

Entrevista

Prova de Coragem | "Esse é meu filme mais realista e eu desejei isso", diz diretor

Cultuado nos anos 1980, Roberto Gervitz volta às telas com drama romântico

04.05.2016, às 12H51.
Atualizada em 15.11.2016, ÀS 17H04

Centrado nos esforços de um médico para superar angústias afetivas e traumas do passado a fim de realizar o sonho de fazer uma escalada na Terra do Fogo, Prova de Coragem é um drama romântico que chega nesta quinta-feira ao circuito nacional - após uma aclamada passagem pelo Festival de Montreal, no Canadá - marcando o regresso à telona de um dos mais promissores cineastas da década de 1980: Roberto Gervitz. O cult Feliz Ano Velho (1987), inspirado em livro de Marcelo Rubens Paiva, fez dele um diretor de prestígio internacional, marcado por uma relação estreita com a literatura. Em 2005, com Jogo Subterrâneo, ele fez uma ponte com a prosa do argentino Julio Cortázar (1914-1984), mas, depois disso, não lançou mais filmes, regressando agora, pelas páginas do escritor gaúcho Daniel Galera, numa adaptação livre (e leve) do romance Mãos de Cavalo. Na trama, o Dr. Hermano (interpretado por Armando Babaioff) se vê perdido diante de escolhas, de lembranças e de uma gravidez que não deseja para seu futuro com a mulher, a artista plástica Adri (Mariana Ximenes), enquanto planeja uma viagem pelos confins da América do Sul para escalar. O lançamento desta produção animou a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, a realizar, neste fim de semana, uma retrospectiva integral da obra de Gervitz, que analisa sua própria estética na entrevista a seguir ao Omelete

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Omelete: De que maneira a literatura serve de pilar criativo para a sua construção visual? Qual é a relação estética que você estabelece entre cinema e prosa? 

Gervitz: A literatura me estimula em um processo inconsciente que precede a criação de imagens cinematográficas. Eu não saberia te precisar como, mas é certo que estou longe de querer ilustrar o livro que li. São linguagens absolutamente diferentes. O universo da literatura me serve mais como um ponto de partida narrativo (mesmo que eu o venha a subverter ao longo do trabalho) e na identificação de temas que me interessam. E, claro, eu me detenho muito nos personagens, talvez seja o que mais me alimenta no universo literário. É curioso, mas os livros que trabalhei têm um material muito pequeno no que diz respeito às histórias. Em relação à estética, eu diria que sim, a estética dos meus filmes é, de alguma forma, inspirada pelas obras literárias das quais parti. Prova de Coragem, por exemplo, se inspira na estética seca, realista, avessa a grandes reflexões e a uma poetização da vida. Mas essas coisas precisam encontrar a sua expressão em um trabalho com vida própria.

Omelete: De que maneira a jornada afetiva de Hermano dialoga, conscientemente, com a travessia existencial de seus protagonistas do passado: o Martín de Jogo Subterrâneo e o Mário de Feliz Ano Velho? O que os aproxima? 

Gervitz: Eu diria que, conscientemente, não estabeleço esse diálogo. Jamais pensei nesses temos, porém reconheço, depois ver esse filme realizado, que tal diálogo existe, mas não é deliberado. Eu sempre escrevo na esperança de criar personagens absolutamente diferentes entre si. O que liga tais personagens é a tensão entre o desejo e o medo de viver, um embate entre a pulsão de vida e uma tendência a negá-la. Não são personagens reflexivos, mas pessoas que se colocam dessa forma diante dos desafios de suas vidas, frutos de suas escolhas e/ou omissões. São personagens às voltas com os dilemas de existir, mas que não os formulam de forma lúcida, não os formulam em termos filosóficos. Eu diria também que há uma presença do universo psicológico que se revela nas ações, nas atitudes e nas trajetórias de cada um em oposição ao psicologismo que buscam uma relação de causa e efeito entre o passado e o presente. Em Jogo Subterrâneo, eliminei o passado deliberadamente para evitar qualquer explicação para o jogo de Martín. Ao mesmo tempo, há diferenças importantes entre esses personagens tanto em relação ao momento da vida que atravessam como a forma de se relacionarem com o referido medo/desejo de viver e de se desenharem, não no sentido de se transformarem em cidadãos bem comportados, mas no sentido de se libertarem das amarras que os impedem de ser.

Omelete: O que existe potencialmente da experiência estética da sua geração - dos anos 1980, sobretudo - num filme como Prova de Coragem

Gervitz: É difícil reunir aqueles filmes todos em uma experiência estética geracional. Houve sim, alguns filmes que foram chamados de “neonrrealistas”, por trazerem à tona uma estética pós-modernista, cosmopolita e urbana. Eu acho que ali fica claro que o Brasil se urbanizara e modernizara ao longo da ditadura militar e já não teria mais um cinema voltado para a realidade rural, vista como um espaço de potencial revolucionário como se vê nos filmes do cinema novo. Isso para o bem e para o mal. Eu me lembro que conheci uma crítica da revista Variety em uma mostra de filmes brasileiros daquela década, na Itália, e ela me disse que os nossos filmes não eram brasileiros. Eu respondi que ela pensava em um Brasil que não existia mais. Eu, por exemplo, nunca me afinei com o ideário e a estética pós-modernista. Jamais pensei em fazer um filme pós-moderno em Feliz Ano Velho, que não tem a postura cínica e algo debochada, sobretudo ornamental, dos trabalhos dessa época. Sempre neguei o ornamento e, em meus trabalhos, nada está lá de graça, como enfeite. Meu terceiro Longa-metragem, Jogo Subterrâneo, foi visto por alguns como portador de uma estética dos anos 1980 e eu acho que o filme, em sua essência, não tem absolutamente nada de pós-moderno. Prova de Coragem eu creio que é meu filme mais realista e eu desejei isso mesmo: fazer um filme estritamente realista, embora eu não tenha abandonado uma afinidade com a metáfora e o universo simbólico, embora de maneira muito tênue. 

Omelete: O quanto o drama de Hermano dialoga com a sua trajetória nas telas e na vida?

GervitzEu acho que o drama de Hermano dialoga com a minha vida,  assim como os dos meus outros personagens, inclusive as mulheres, mais isso ocorre com todos os personagens que criamos. Você não esquece de você quando cria, pelo contrário, mergulha fundo e encontra o imaginário. Mas não há nada de explicitamente biográfico, pois creio que na criação pretendemos transcender o factual e dar-lhe de alguma forma um sentido. 

Omelete: O quanto a experiência documental de seu primeiro longa-metragem – Braços Cruzados, Máquinas Paradas - ainda serve de bússola estética para seu percurso na direção? 

Gervitz: Eu não saberia te dizer. Creio que, como bússola estética, certamente não serve mais, pois aquele documentário marcou um momento muito mergulhado na história política e social do país. Foi um filme feito para instrumentalizar o movimento de reconquista da democracia. Era a luta de classes ali, na nossa frente. Certamente como bússola estética não serve mais, uma vez que a estética não paira sobre as questões e os universos com os quais trabalhamos. 

Omelete: Já tem novo projeto de longa à vista? O que justifica um hiato tão longo entre um filme e outro em sua carreira?

Gervitz: Estou trabalhando em três projetos. Fazer um filme como queremos, criando as condições para que aconteçam, está cada vez mais difícil, pois existe um leque cada vez mais estreito do mercado. A verdade é que está cada vez mais difícil fazer filmes como Prova de Coragem chegarem ao mercado. Tenho colegas de geração, ótimos cineastas, que não dirigem um filme há mais de sete anos e não têm a menor ideia de quando o farão. A verdade é que um cineasta com uma produção grande é jogado no mesmo saco de cineastas com um filme só. Estamos sempre começando do zero. 

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