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Jauja | Crítica

O épico interiorizado

25.06.2015, às 21H08.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H35

Na entrevista que deu ao Omelete, o cineasta argentino Lisandro Alonso disse que é na procura pela locação que surgem as histórias que ele conta. Embora seja um resumo muito preciso do seu cinema, é também insuficiente; os filmes minimalistas de Alonso, desde sua estreia em longas com o espantosamente simples La Libertad (2001), usam a escolha de locações (quase sempre filmadas com planos abertos e raríssimos close-ups) para gerar toda uma ficção onde os espaços se preenchem num esforço pictórico com fantasmas de histórias outras, à força da colaboração com o espectador.

Assim como Lucrecia Martel, que ganhou status no cinema mundial com dramas lacunares e atualmente prepara um épico de época, Zama, Alonso também adere a esse gênero para tentar dar um passo além no seu processo de criação. Seu Jauja é o mais próximo que Alonso chegou até hoje de uma narrativa tradicional, o que não quer dizer muito: Viggo Mortensen vaga em silêncio pela Patagônia do século 19 na maior parte do filme, no papel do expedicionário dinamarquês Dinesen, atrás da filha que fugiu com um amor adolescente. "Jauja", diz uma cartela no início, é como é chamada essa terra folclórica de sonhos por onde Dinesen passeia, à margem da loucura.

Só essa explicação inicial já indica que Alonso está se propondo aqui a contar uma história mais acessível - no sentido em que dá as coordenadas para o público entender sua Patagônia antiga como um cenário de fabulação. O caso é que seus filmes sempre lidaram com terras "folclóricas", naquilo que essa expressão tem de mais básica: lugares marcados por um conjunto de ritos que as pessoas passam de geração para geração, os fantasmas que populam seu cinema. O que Jauja tem de diferente é a disposição mais frontal de tornar esse folclore parte de uma experiência de gênero.

E não parece por acaso que seu filme de época lide com gêneros populares da literatura ibérica da época das navegações, com uma eloquência fake que ressoa desde o início no design de som peculiar de Alonso, que exagera os ruídos ambientes e aumenta o volume de Mortensen quando ele se afasta da câmera, para engrandecer, com uma ponta de ironia, a missão autoimportante do cavaleiro conquistador. Nesses momentos o filme ganha tons de humor à Cervantes, com Dinesen fazendo o Don Quixote da vez, incapaz de aceitar sua pequenez diante do mundo, com sua luneta virada para terras à sua espera (vistas que Alonso nos sonega, porque é registrar a pose de Dinesen que importa).

Se o início do filme deixa clara essa sua disposição para a farsa - não haveria outra função do que essa, em cenas como a da punheta no laguinho - é a partir da jornada de Dinesen que Jauja se transforma e se inverte. De um filme que trata os gêneros como artifício (cheio de personagens que se comportam como heróis de um romance de cavalaria ou vítimas de um amor de perdição), passa aos poucos a conceber um cinema de gênero mais autêntico, por assim dizer, em que a grandiosidade do épico vem não de um pressuposto textual mas sim de uma experiência de cena: a travessia a que Mortensen se entrega com a disposição dos grandes atores.

E como no filme mais recente de Alonso, Liverpool (2008), com suas salas de máquinas frias e suas florestas moribundas na neve, testemunhamos em Jauja a vida reenformada na solidão mais inóspita, alheia à noção de lar, de pertencimento. No ocaso de um "narrador" que aos poucos vai se despindo de sua consciência, seu artifício (o som exagerado de Dinesen no extracampo poderia qualificá-lo, de início, como um candidato a narrador em primeira pessoa do filme), sua figura se liberta, e o deserto se torna de fato um espaço de fabulação, de cantigas atemporais. E enquanto presenciamos o cinema acontecendo na sua forma mais intuitiva, a ficção pode, enfim, emanar de Dinesen, um cavaleiro por merecimento.

Nota do Crítico
Excelente!
Jauja (2014)
Jauja
Jauja (2014)
Jauja

Ano: 2014

País: Brasil, Argentina

Classificação: 12 anos

Duração: 109 min

Direção: Lisandro Alonso

Roteiro: Fabián Casas, Lisandro Alonso

Elenco: Viggo Mortensen, Ghita Nørby

Onde assistir:
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