Beyond - Two Souls não esconde em momento algum que tenta emular emoções e cenas típicas do cinema. A dramaticidade transmitida nas atuações, trilha sonora e roteiro deixa clara a intenção de não ser comum, mesmo sendo o quarto trabalho do desenvolvedor David Cage. Apesar de avançar em alguns quesitos e demonstrar um amadurecimento de conceitos, Beyond não consegue se estabelecer em nenhuma frente escolhida, seja ela games ou cinema.

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Ao redimir as mecânicas a simples ferramentas de continuidade, o título transforma o controle em um empecilho à imersão. A escolha é compreensível mas nociva à experiência, que se baseia na narrativa e interação entre jogador e personagem. O roteiro, por outro lado, mostra uma evolução na escrita de Cage, que mesmo com um didatismo exagerado, constroem ao menos uma relação verossímil sem descambar para sua pieguice tradicional.

Realidade gráfica

No estilo da Quantic Dream, os gráficos são parte essencial do jogo - por si, uma definição recheada de contradições. Em Beyond a empresa escala Ellen Page e Willem Dafoe para os papéis principais e os dão modelos digitais fiéis a realidade. O avanço tecnológico não tem impacto nas primeiras horas de jogatina; quando atinge a metade do jogo, no entanto, a diferenciação entre realidade e virtual é pequena. Em Heavy Rain, por exemplo, a opção por uma fotografia noir não dava credibilidade aos modelos de personagem. Beyond opta por ângulos tradicionais e cenários limpos, que não chamam atenção e deixam os atores como destaque da cena.

A complexidade dessa captura de movimentos é o ponto mais profundo do game. A não ser pela boa história de Jodie/Aiden os coadjuvantes são tão caricatos e rasos quanto um fraco blockbuster hollywoodiano. O personagem de Dafoe divaga sobre questões filosóficas e sobrenaturais, mas no fim se apresenta como um simples cientista louco - o questionamento fica banal e se perde no decorrer da história. O relacionamento de Jodie e Ryan é outra parte falha. Além de deixar pontas soltas no envolvimento da dupla, as mecânicas de escolha não são efetivas - nem o final, nem o sentimento dos dois muda, independente da decisão tomada. Por mais indiferente que o jogador seja em relação a Ryan, a decisão foi tomada pela Quantic Dream.

A história de Jodie Holmes

Melhor do que a história de Beyond é a maneira como ela é contada. Cage opta por apresentar a vida de Jodie de forma não linear, intercalando experiências que definem o futuro da história e os traços da personalidade da protagonista - nenhum dos capítulos do jogo é irrelevante. E mesmo que esse tipo de montagem não seja inédita, a execução contribui mais para a narrativa do que os diálogos, quase sempre explicativos. Beyond não deixa o jogador se questionar por um segundo, dando a solução ou o flashback minutos depois de um acontecimento dúbio.

A relação entre Jodie e Aiden, a entidade que vive com ela desde o nascimento, é a única que funciona de fato no game. Focado nisso, Beyond alcança todos os objetivos propostos, pois dessa relação, o jogador desenvolve sentimentos conflitantes por ambos. O controle de Aiden, inclusive, é a única mecânica que contribui para a imersão do jogador. No princípio, mexer objetos e possuir pessoas é leviano, mas com o passar do tempo se torna algo natural. O maior êxito na construção deste personagem é não dar cara ou voz a ele e mesmo assim torna-lo tão presente quanto Jodie. Sem uma fala, Aiden tem mais personalidade do que qualquer outro coadjuvante de Beyond.

A boa convergência entre narrativa e mecânicas se encerra em Aiden. Há menos comandos indicativos e travados que em Heavy Rain, mas não existe uma combinação suave que deixe de atrapalhar a experiência. As tentativas de tornar Beyond mais agitado com cenas de ação ajudam no ritmo da história, mas frustra o jogador que tenta se sentir na pele de Jodie. Correr, lutar, dirigir ou atirar são atos sem importância, tanto do ponto de vista narrativa quanto da jogabilidade. Ao enfrentar inimigos, Jodie é automática a ponto de puxar o jogador para fora da história.

Quase cinema, quase game

Não fosse pela primazia técnica, Beyond poderia ser um jogo qualquer. Sua trama e montagem contribuem mais para o histórico da Quantic Dream que para os games. Por baixo da bela superfície, o roteiro discute espiritualidade de uma forma incomum na indústria de jogos, mas não consegue se sustentar com apenas dois bons personagens. O esforço que faz para ser cinema pouco contribui para a jogatina; apenas deixa claro que tudo ali mostrado já foi visto em uma tela maior.

Por mais importante que seja a narrativa, relegar o controle a um papel quase irrelevante vai contra a imersão característica de jogos de videogame. Aqui, agir e apertar botões são obstáculos para o desenvolvimento da história. E ainda que o marketing e os discursos de Cage queiram vender algo inédito, Beyond não traz uma experiência nova.

Nota do crítico