Harry Potter e a ordem da Fênix

Lia Wyler
Foto © Ana Paula Oliveira

Há muita ansiedade em torno do lançamento de cada volume da história de Harry Potter. A senhora já chegou a ser questionada por algum fã na rua sobre o andamento do trabalho?

Lia Wyler: Tradutor é um profissional pouco reconhecido de várias maneiras, por isso não há curiosidade em torno da minha pessoa, exceto por parte de conhecidos, parentes e filhos de conhecidos. Aos que perguntaram como ia o Harry informei que estava trabalhando uma média de dez horas por dia e que o trabalho deveria ser concluído em um prazo de 100 dias úteis, o que realmente aconteceu.

Uma parte do trabalho envolve a criação de nomes no processo de tradução, como Corvinal para traduzir Ravenclaw, e Lufa Lufa em lugar de Hufflepuff. Qual de suas criações em Harry Potter a deixa particularmente feliz até hoje?

Acho que as únicas que não questiono muito são as que se referem ao quadribol como jogo e como livrinho de referência. Os nomes das casas, por exemplo, eu jamais teria traduzido se soubesse que o primeiro volume se transformaria em uma série. A J.K.Rowling gosta de fazer pós-criações, ou seja contar as origens de alguma coisa a que já se referiu várias vezes e isso resulta, para o tradutor, em um problema monumental. Veja o caso do Pomo de Ouro. No livro Quadribol através dos Tempos ela inventa um passarinho que jamais existiu nos livros de zoologia e cujo nome abreviado vai designar a bolinha alada. Eu tive igualmente de inventar um passarinho que nunca existiu, mas que tivesse um nome verossímil, o pomorim. 

Como foi decidida a manutenção ou não dos nomes em inglês para os personagens? Em A Pedra Filosofal, uma das jogadoras do time de Harry aparece como Cátia Bell, e depois em O Prisioneiro de Azkaban ela volta a usar o nome como no original, Katie. O que levou à alteração?

Os nomes de batismo seriam traduzidos e os de família mantidos, à exceção de Harry Potter. Todos as referências culturais seriam traduzidas, ou seja, tornadas inteligíveis em português mas não seriam adaptadas. Acontece, porém, que o número de pessoas que interfere com um livro em uma editora é muito grande e a maioria não tomou conhecimento da minha proposta. Então há discrepâncias e necessidade de corrigir o que ficou para trás, quando possível. 

No original, Hagrid fala com erros e um sotaque peculiar. Como foi tomada a decisão de não utilizar esses recursos, dando a ele uma linguagem comum?

Houve algumas razões para não procurar recriar um sotaque para Hagrid. A primeira é que o primeiro livro foi escrito para crianças entre nove e doze anos, um período da vida em que estão se cristalizando em suas cabeças os preconceitos e as maneiras de expressá-los. As pessoas que falam "errado" não fazem isso porque querem e não gostam de ver os seus "erros" imitados. Os livros não foram traduzidos apenas para as classes mais abastadas que têm a possibilidade de freqüentar bons colégios, mas também para as crianças e jovens pobres que fazem filas nas bibliotecas para ler Harry Potter. 

A legendagem dos filmes seguiu a tradução dos livros, mantendo, por exemplo, os nomes das Casas que a senhora escolheu. A senhora teve algum contato com o trabalho de legendagem?

Tive. Os colegas encarregados da legendagem utilizaram os meus glossários, embora a Warner não tenha tido a preocupação de me remunerar pelo uso do meu trabalho. 

Harry Potter tem sido vítima de algumas controvérsias, já que o livro é visto como uma defesa da bruxaria, incluindo uma discussão no Brasil, onde foi condenado o uso do termo "trouxa" para designar a comunidade não-mágica. O que a levou à escolha dessa palavra como tradução para muggle para designar as pessoas comuns?

Dizer que a série de Harry Potter tem qualquer relação com a bruxaria é das tolices mais rematadas que já se disse desde o seu lançamento. A acusação tem partido de seitas televisivas em países de língua inglesa e seus seguidores no Brasil e não se sustenta; tente você fazer qualquer dos feitiços que Harry faz e verá que vai quebrar a cara. Além disso, no Brasil sempre houve uma tradição de respeito a todas as religiões e essa intolerância nascente é extremamente preocupante.

A controvérsia sobre a palavra muggle é artificialíssima. A autora declarou em juízo, na Inglaterra, que a palavra e seus "n" significados foi por ela usada no sentido de "fool". Fiz uma análise de todas as palavras que significavam "fool" em português e me fixei em "trouxa" por ser mais forte que tolo ou bobo e mais branda que "otário", e, ainda, por lembrar a sonoridade de "bruxo". Trouxa é o indivíduo incapaz de devanear, de sonhar, de fantasiar de cara limpa. 

A senhora traduziu também os dois livros que Joanne Rowling escreveu em benefício do Comic Relief, Animais Fantásticos & Onde Habitam e Quadribol Através dos Séculos, que, apesar de bem mais curtos que os volumes de Harry Potter, apresentam uma enorme quantidade de termos para tradução. Quais foram os maiores desafios desses dois trabalhos paralelos? Foi sua a decisão de apresentar os verbetes em inglês e português?

Segundo a autora ela realmente deu asas à imaginação e se divertiu imensamente para criar os nomes nos livros e procurei, em escala bem mais modesta, fazer o mesmo. O problema prazo é sempre uma imposição castrante e inescapável, por isso alguns ficaram aquém do que eu teria gostado. Foi minha a decisão de apresentar os verbetes nas duas línguas para escapar à imposição descabida da Warner de que os verbetes saíssem apenas em inglês. 

A senhora esperava que A Ordem da Fênix fosse ainda maior que O Cálice de Fogo? Qual foi sua primeira reação ao saber o tamanho do livro?

Esperava que fosse do mesmo tamanho ou menor porque em leitura eu pessoalmente valorizo mais as idéias, o conteúdo, do que o palavrório excessivo. A imposição da editora inglesa de só liberar o livro para tradução após o seu lançamento na Inglaterra foi a pior noticia que poderia haver, pois obrigou os tradutores do mundo inteiro a trabalhar em prazos excessivamente curtos. Mesmo que o editor tenha procurado me oferecer condições "ideais" para realizar o meu trabalho e não tenha me faltado com o seu apoio e estímulo, o cansaço é indescritível e fica sempre uma enorme incerteza quanto à qualidade do trabalho feito. 

O que a senhora acha dos grupos de fãs que fizeram traduções e as disponibilizaram na Internet sob o argumento de que não queriam esperar meses pelo lançamento de A Ordem da Fênix no idioma de seus países?

Foi uma iniciativa ilegal, mas ainda assim compreensível se tivesse sido feita apenas para satisfazer a curiosidade, sem intenção de lucrar em cima dos que não sabem inglês. Quando somos jovens tudo é urgente e não medimos esforços para obter o que queremos. Medir as conseqüências, pesar prós e contras são coisas que a gente aprende a fazer com o tempo. Acho que eles não mediram todas as implicações de sua iniciativa.

Tendo trabalhado tão intimamente com os cinco livros, qual sua opinião sobre os rumos dramáticos que a história tomou em A Ordem da Fênix?

Achei que poderiam ter sido bem mais dramáticos em antecipação à grande luta entre a Luz e as Trevas. Já reparou que Luz é singular e Trevas plural? O conflito existe desde que o mundo existe, as fabulações que cercam esse conflito é que prendem o nosso interesse e despertam as nossas emoções.  

A senhora já disse que sua personagem adulta favorita é a professora McGonagall. Sua preferência continua, ou outra das personagens introduzidas em A Ordem da Fênix a conquistou?

Gosto da McGonagall quando ela abre espaço para a criança que guarda dentro dela, mas os meus personagens secundários favoritos são os gêmeos Weasley que vivem imaginando novas travessuras. Fui uma criança muito travessa, "arteira", dizia-se na minha infância e adoro ver crianças inventivas aprontando para obrigar os adultos a dar tratos à bola para impedir os capetinhas de provocarem situações de perigo ou perversidade para eles e para os outros.

Algum tempo antes do lançamento, o primeiro parágrafo de A Ordem da Fênix foi divulgado. A senhora chegou a ler esse trecho, tentando antecipar como seria o trabalho?

Não, não cheguei. Estive extremamente preocupada em dar conta de todos os compromissos já assumidos, inclusive terminar o meu próprio livro, para estar livre na hora em que o Harry Potter fosse liberado para tradução.

Como já é habitual nas traduções, a senhora trabalhou dentro de um prazo bastante curto, e sob grande pressão. Agora que o livro está pronto, a senhora, que já disse gostar muito da história, pretende reler todo o volume apenas por diversão, ou prefere tirar férias de Harry Potter até o sexto livro?

A curtição é o durante - o durante é que dá colorido à vida de um tradutor, porque você vai concordar que sentar todos os dias diante de um livro e de um computador só é possível se o livro fizer você rir, chorar, lembrar, se enraivecer, enfim, se fizer você se emocionar. Essa é a diferença entre traduzir ficção e livro técnico.