Nosso personagem foi uma figura cuja história de vida ou mesmo existência se confunde com o próprio significado da palavra "peculiar". Seu nome é Hunter S. Thompson. Dr. Thompson, como passou a ser chamado pela insistência em afirmar que era "um doutor em jornalismo", foi uma dessas lendas vivas da contracultura. Quantos sujeitos com um passado repleto de desajustes se forma em jornalismo, passa a integrar a classe de uma profissão oficiosa e objetiva, e subverte seus paradigmas mais fundamentais?

Este é o legado de Dr. Gonzo, outro de seus apelidos. A origem deste vem do fato de ter sido ele o inventor do Jornalismo Gonzo, um estilo próprio de praticar o jornalismo literário trazido à luz por Tom Wolfe, disseminado e desenvolvido por Joseph Mitchell, John Hersey, Gay Talese, Lilian Ross, Truman Capote e outros geniais, como Lester Bangs - o que mais se aproximava da escrita mordaz e genuina do Gonzo. Mitológicos escribas da fase áurea de publicações como a Esquire e a New Yorker.

Hunter S. Thompson

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Hunter S. Thompson

O jornalismo literário não tem compromisso com a emergência dos fatos, mas sim com boas histórias, eventos que podemos categorizar como simplesmente insólitos. Exemplos: Mitchell é conhecido por perfis de lugares e pessoas comuns, como um mendigo; Lilian Ross narrava fatos em detalhe esmerado, mas sem interferir, como uma mosquinha na parede; Tom Wolfe usava onomatopéias. Todos têm em comum o texto longo, apurado ao extremo, arquitetado segundo preceitos literários - só que construídos com o rigor jornalístico de checagem, entrevistas, investigação e pesquisa.

O estilo de Thompson, porém, era o seguinte: ele escrevia geralmente entorpecido de todos os tipos de drogas possíveis - nesse quesito era um degustador de grandeza; redigia em primeira pessoa, sempre desrespeitando a estrutura convencional; a narrativa seguia na ordem dos acontecimentos, no presente, por isso muitas vezes usava gravador; misturava alucinação com realidade, ou melhor, ficção e factual; as informações eram imprecisas; muitas vezes dava pseudônimos a seus personagens ou a si mesmo (no livro Medo e Delírio em Las Vegas, que acaba de ser republicado no Brasil pela Conrad, chama-se Raoul Duke); tinha postura anárquica; e sua atuação não só interferia nos fatos como também opinava ferozmente sobre eles.

Contas extrapoladas em hotéis, estragos, carros alugados e abandonados, fuga policial, danos de toda ordem causados por um estado de fritação alucinógena em plena virada dos insurgentes anos 60. Sua fama começou quando atravessou a América em companhia de seu fiel advogado Oscar Acosta. Juntos foram para cobrir um off-road de motos para a revista Rolling Stone. No fim, eles entupiram o porta-malas de drogas e saíram rasgando em direção a Las Vegas, esmerilhando num conversível sem capota, ao som do mais puro rock 'n' roll. Voltou sem matéria, e enviou um calhamaço das anotações feitas durante "a aventura selvagem em busca do sonho americano", e da consequente decepção. A revista terminou publicando, em 1971, em capítulos, o texto que virou o clássico Medo&Delírio em Las Vegas. Tudo isso foi adaptado ao cinema em 1998 por Terry Gilliam, que dirigiu o camarada Johnny Depp no papel principal, e Benício del Toro como seu companheiro.

Já em Uma Espécie em Extinção, quem interpreta o Gonzo é Bill Murray e, segundo consta, Depp está escalado para reencarná-lo em The Rum Diary, já em fase de pré-produção.

Paixões: Armas, Bob Dylan & LSD

Thompson também trabalhou para a Playboy e Sports Illustrated. Sempre polêmico, mas incontestavelmente brilhante, criticou governos e esteve envolvido com as tramas mais bombásticas que se possa crer. Uma de suas reportagens famosas é "Tiroteio no Brasil", datada de 1963, que saiu no National Observer e por aqui foi editada pela Conrad, na compilação A Grande Caçada aos Tubarões. O livro, assim como os citados Rum e Medo e Delírio em Las Vegas, faz parte da coleção que a editora dedica ao autor. Além destes, já puseram no mercado Screwjack, composto de três textos, num dos quais descreve sua experiência com mescalina; e Medo e Delírio Sobre Duas Rodas (1965), produto de sua vivência em meio aos Hell's Angels - imagine a situação.

O adjetivo ou expressão mais usado por Thompson nos textos é "estranho". Já a palavra "gonzo" tem significado controverso, mas uma das explicações cita uma espécie de competição de bebedeira em que o último a cair é o Gonzo. "Histórias estranhas de um tempo estranho": é disso que Hunter foi à caça. Ele acreditava na contracultura e na força criativa das palavras, assim como no ácido e em Bob Dylan (morreu ao som de "Mr. Tambourine Man").

Quando uma de suas bad trips revelou a decadência da "Love Generation", seus escritos passaram a ser cada vez mais incontidos, escavadores e desvendadores da podridão que era a política estadunidense. O cara foi um maluco, um estranho, e talvez por isso mesmo entendesse o lado de quem não faz parte do esquema.

Da acidez libertária para a descrença completa, passou-se tempo, até que no início de 2005, aos 67 e totalmente descrente na humanidade, Thompson metesse um tiro nos miolos, em seu sítio em Aspen. Pirou, buscou uma das numerosas armas de sua coleção, e BANG!, acabou com o pesadelo. "As coisas nunca ficam estranhas demais para mim", declara seu alter-ego na cena final de Uma Espécie em Extinção. Contudo, os novos tempos parecem ter passado a perna nas suas previsões.