Explicando Tolkien - Ronald Kyrmse - Martins Fontes - 192 pg.

O "mestre" Tolkien

A Guerra do Anel é uma versão ficcional da Segunda Guerra Mundial?

Frodo: Demasiado inseguro no começo

Gandalf: O melhor representado

Só deveriam existir as versões estendidas!

O Hobbit no cinema por Peter Jackson: Mera utopia

Ronald Kyrmse é autor do livro Explicando Tolkien. Ele é um dos mais respeitados conhecedores e pesquisadores das obras de J.R.R.Tolkien no Brasil. Kyrmse também foi revisor técnico das edições brasileiras dos livros do escritor sul-africano e tradutor de sua biografia. Confira abaixo o que ele achou das adaptações para as telas de O Senhor dos Anéis, como os fãs estão encarando os novos fanáticos pela saga e muito mais:

O que criou tamanha adoração por um livro?

Atribuo a fascinação das obras de Tolkien ao fato de que o mundo que ele criou tem profundidade, isto é, ao ler tem-se a impressão de estar vivendo em um ambiente com milhares de anos de história, que não é "raso" e sim possui uma cultura (ou culturas) subjacente(s). No mundo "real" (prefiro dizer, com J.R.R.Tolkien, no Mundo Primário), é fato que o autor levou mais de 50 anos refinando e revisando sua sub-criação, sem nunca se dar por satisfeito. Creio que é isso que os leitores sentem, mesmo que subconscientemente. Além disso, a obra de JRRT contém muitas mensagens e verdades que se podem aplicar ao Mundo Primário, e podemos lê-la também como um guia para nossas próprias vidas.

Tolkien não concordava com grupos que falavam em élfico e agiam como se seu universo ficcional fosse real. Como os grupos organizados de fãs combinam essa posição do autor com suas atividades?

Não sei se os fãs se preocupam muito com essa opinião do Mestre... Todos tratamos o mundo tolkieniano primariamente como algo real (apesar de muitíssimo remoto no tempo), e de vez em quando nos lembramos de que afinal de contas se trata "apenas" de uma obra de ficção... Mas, falando sério, os lingüistas élficos, os geógrafos (como Karen Wynn Fonstad, autora do Atlas da Terra-média a ser publicado pela Martins Fontes), e tantos outros pesquisadores partimos, sim, da convenção de que a Terra-média e regiões adjacentes são verdadeiras, e baseamos todas as nossas argumentações nas "verdades históricas" do mundo subcriado.

Algumas pessoas acham O Senhor dos Anéis um livro de andamento arrastado, justamente devido à enorme profusão de fios narrativos, detalhes, nomes, apêndices. Tolkien é um autor difícil?

Sem dúvida! Mas essa dificuldade decorre exatamente da profundidade de sua obra. Sem querer diminuir a obra de J.K.Rowling, por exemplo, minha opinião é que Harry Potter é uma leitura fácil por se passar em um mundo muito menos elaborado, e talvez por isso faça tanto sucesso entre os jovens, não muito acostumados à literatura "difícil". Mas temos de nos lembrar de que a vida real tem muitos detalhes, nomes e fios narrativos. A obra de Tolkien a imita muito bem.

Em seu livro você elogia a tradução brasileira de O Senhor dos Anéis pelo cuidado em seguir as determinações do autor e manter a métrica e a rima dos poemas. Que outras traduções são consideradas boas pelos especialistas?

É difícil falar sobre um tema que não domino, o das traduções pelo mundo. Conheço a primeira tradução alemã, de Margaret Carroux, que reproduz muito bem a linguagem tolkieniana (em que pese ser o alemão uma língua afim do inglês). Já a recente tradução alemã de Wolfgang Krege banaliza alguns aspectos do texto, por exemplo as formas de tratamento de um personagem pelo outro. Adam Tolkien, neto de JRRT, fez traduções para o francês, creio que do "Livro dos Contos Perdidos", tidas por primorosas (não as conheço, infelizmente). A tradução portuguesa da Europa-América, além de demasiado lusitana para nosso consumo, peca pela não-tradução dos nomes próprios e pela versão de poesia como simples prosa.

Apesar de dizer no "Prefácio" que a guerra do Anel não tem conexão com a Segunda Guerra Mundial, vários comentaristas continuam ligando a criação de Sauron à ascensão de Hitler.

É claro que o mundo real às vezes imita a arte: Pode-se encontrar paralelos ao "SdA" no Oriente Médio, no Império Romano, e em muitas mais épocas e localidades. Mas paralelos são normalmente fortuitos, não intencionais. O "SdA" não é uma alegoria proposital da 2ª Guerra Mundial. Tolkien inspirou-se, sim, em sua própria experiência na 1ª Guerra Mundial para as descrições de batalhas e devastação das paisagens.

Quais foram os maiores absurdos que um especialista como você já viu ser dito ou escrito a respeito de Tolkien e O Senhor dos Anéis?

Mais uma vez, é difícil opinar sobre algo de que só tenho conhecimento muito parcial. Porém os absurdos são inúmeros. Talvez os mais comuns sejam os mais fáceis de rebater: que todos os personagens são totalmente bons ou maus, portanto tudo é "ou preto ou branco" (esquecendo-se a tentação de Boromir, de resto bem intencionado, ou o lado até compassivo de Sméagol); que as mulheres não desempenham papel importante na obra de Tolkien (suprimindo os feitos de Éowyn, Lúthien, Nienor, Morwen, Elwing, ...); que a obra de JRRT é infantil (como se adultos não pudessem apreciar ficção fantástica, por muito que contenha elfos, anões e hobbits)... Não, não sei qual foi o maior absurdo, apesar de ter visto muitos enormes. Mas alguns são irritantemente comuns, apesar de errôneos.

Na adaptação para o cinema, como você mesmo comenta em seu livro, é necessário fazer alterações e escolhas quanto às cenas que permanecerão no corte final. Dois pontos muito criticados pelos fãs da obra foram que os filmes deixaram de fora Tom Bobadil e aumentaram a presença de Arwen. O que você achou da adaptação? E destas e outras mudanças?

Tom Bombadil: Se fosse mostrado no filme, seria muito difícil de compreender e exigira tantas explicações que a ação seria seriamente comprometida - por mais que todos nós gostemos imensamente dele....

"Arwen ampliada": Na minha opinião, desnecessária. Poderia haver uma trama romântica mesmo sem o desaparecimento de Glorfindel [Elfo que foi substituído por Arwen no filme]. Creio que houve mudanças que, apesar de historicamente incorretas, deixaram o filme muito bonito. Exemplo: os arqueiros élficos chegando ao Abismo de Helm (em Duas Torres), ou a justaposição da canção de Pippin diante de Denethor com a cavalgada dos gondorianos para Osgiliath (no Retorno do Rei). O importante é que, apesar de tudo isso, Peter Jackson foi fiel ao espírito da obra de Tolkien - que ele ama - se bem que nem sempre à letra

Você já viu as versões estendidas dos filmes? Qual sua opinião sobre as cenas incluídas?

Por exemplo, na versão estendida da Sociedade do Anel, as cenas adicionais sobre os hobbits e o Condado explicam muita coisa que a versão de cinema deixou obscura; as cenas com Denethor, Boromir e Faramir nas Duas Torres também iluminam as relações entre eles. Nem deveria haver versões "não-estendidas"! (Mas duvido que o público comum agüentasse as sessões...)

Quais personagens aparecem na tela realmente fiéis em sua personalidade e motivação à criação de Tolkien que você estuda há tantos anos?

Em primeiro lugar: Gandalf! Sam e Legolas também estão adequadamente retratados. Aragorn é talvez um pouco hesitante demais; Frodo está demasiado inseguro no começo (mas no final a insegurança até que se justifica); Merry e Pippin, além de difíceis de distinguir, poderiam ser menos ridículos - e Gimli certamente deveria ser menos cômico! Vamos respeitar a dignidade milenar dos anões...

Como foi ouvir os personagens falando nos idiomas criados por Tolkien?

Os atores, ao que parece, tiveram bons instrutores de sindarin (élfico-cinzento). Foram poucas as vezes que ouvi tanto élfico sendo falado - e bem, em geral! - em tão pouco tempo... Gostei muito da experiência.

Você já teve algum contato com David Salo, responsável pela tradução dos diálogos e trilha sonora para o Sindarin e outros idiomas?

David Salo foi um dos poucos "grandes elfólogos" com quem não tive contato direto. Mas pertenço a um grupo lingüístico (na Web) do qual ele também faz parte. Ele fez um bom trabalho, considerando o material relativamente escasso que temos sobre os idiomas élficos.

O sucesso dos filmes trouxe muitos novos leitores para a obra de Tolkien. Como os entusiastas mais antigos, como você, vêem esses "descobridores de Tolkien"? Você acha que esses novos leitores já descobriram a riqueza dos detalhes criados pelo autor, ou querem apenas conhecer a história do filme?

Todos os novos entusiastas de JRRT são bem-vindos! Neste caso, como em todos, o essencial é ser moderado: infelizmente alguns "nerds" são muito incômodos e inconvenientes, e precisam ser reconduzidos, com todo o respeito, aos devidos lugares. Creio que muitos "novos" queiram apenas conhecer mais sobre o filme como espetáculo, mas, se entre esses apenas 10% se aprofundarem no mundo tolkieniano, já teremos, só por causa disso, a perspectiva de um mundo melhor.

Já há comentários sobre a adaptação de O Hobbit para o cinema. Você acha que o público pode se cansar de ver Tolkien na tela?

Não acho que o público se cansaria. Acho, sim, que esses comentários são boatos e desejos, não muito mais do que isso. Os direitos cinematográficos do "SdA" foram vendidos por Tolkien a Hollywood, os do Hobbit não . Por isso - infelizmente! - creio que um Hobbit dirigido por Peter Jackson é uma mera utopia. Mas que eu gostaria de vê-lo, ah, isso gostaria!...