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Coluna fala da destruição vista em Cloverfield, Eu Sou a Lenda e muito mais

04.03.2008, às 00H00.
Atualizada em 17.12.2016, ÀS 19H04

A história é uma máquina que constantemente reduz a humanidade a pó.
John Updike em Terrorista

[O desafio da maçã]

cloverfield

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Cloverfield

Eu Sou a Lenda

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Eu Sou a Lenda

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A "Big Apple" novamente é destruída em dois filmes recentes. Em Eu Sou a Lenda, Will Smith é um cientista e único sobrevivente da mutação genética provocada por uma vacinação em massa para liquidar o câncer. O restante de Nova York é habitada por um bando de zumbis famintos por restos humanos, que só aparecem à noite. Em Cloverfield, a cidade também é destruída por um monstro gigante, o mesmo daqueles filmes japonenes da década de 1950. Além do marketing ostensivo, uma das brincadeiras do produtor J.J.Abrams (Alias, Lost, MI-3 e do novo Jornada nas Estrelas) foi eliminar jovens endinheirados e aborrecidos. Nos dois filmes a cidade que detém a fama de "centro financeiro e cultural" do mundo é retratada de maneira irônica. No filme com Smith, o Times Square vira um cerrado para safaris. No de Abrams o complexo da Time-Warner, o mais novo templo que mistura elegância, ganância, informação, mansões suspensas, alta cultura e alta costura é arrasado pelo monstro que veio do mar. Humanos desprezíveis e uma cena urbana que decreta o modo de vida da modernidade são o cenário para a vingança de quem não consegue fazer parte dela, sejam de mutantes ou de monstros afins. O público em catarse agradece.

[Grandes esperanças]

A idéia de continuidade da raça humana tem como um de seus pilares a troca e a constante ponderação das experiências com seus semelhantes. Para isto existem famílias, turmas, amigos. Em Nova York isto não acontece. Pelo menos no cinema (e em séries com Sex and the City), onde sempre foi retratada de forma pedante como uma cidade dos solitários, embora chiques, cultos e ricos. Quem vive lá deve saber qual é o melhor modo de ser e de viver. Sem precisar de ninguém. O cinema sempre foi lugar de catarse desde os primeiros filmes, em que platéias gritavam de susto e prazer ao assistir tiroteios e corridas de carro. Eu Sou a Lenda e Cloverfield propõem ao público uma destruição sem possibilidade de reconstrução: o que sobra de humano após a extinção de tudo o que conhecemos como o ápice cultural e financeiro de sociedade moderna? Após o 11 de Setembro usar a ficção para aniquilar Nova York parece covardia, mas este palco destroçado também pode ser panorama de novas experiências humanas. No final do filme com Will Smith, a promessa sentimentalista, mais humanista está num cenário de vida simples, uma pequena aldeia protegida por muros. O longa foi chamado de messiânico, mas não é. A brasileira Alice Braga defende bem seu personagem ao provocar um átimo de esperança na figura dramática e solitária feita por Smith. Ela mostra que para realizar algo temos de nos entregar nem que seja para uma miragem de esperança.

[À espera do terror]

Terrorista, último livro de John Updike (Companhia das Letras), é uma fantasia sobre a educação sentimental de um futuro fanático mulçumano. Updike constrói didaticamente e com possante persuasão a personalidade de um garoto que pende para o extremismo após constatar que não consegue fazer parte da sociedade separatista, erotizada em demasia e vazia de ideais. Novamente é Nova York o cenário que assusta o menino perdido entre gangues, uma mãe dedicada ao trabalho e um pai substituído por uma espécie de tutor, um professor de origem judaica, mas rompido com suas tradições. A tese de Updike é que o extremismo vem da segregação. É uma das explicações para as execuções em escolas, seguidos por suicídio do matador. No livro, o garoto quer pertencer, mas não encontra espaço em nenhum lugar, nenhuma turma. O extremismo muçulmano se encaixa perfeitamente neste vazio humilhante do isolamento. Assim como fez o jornalista Lawrence Wright em O Vulto das Torres (Companhia das Letras), verdadeiro tratado sobre o surgimento da Al-Qaeda até o 11 de Setembro, John Updike toma como eixo o egípcio Sayyid Qutb, que na década de 1940 esteve em Nova York e ficou perplexo com uma sociedade liberal, afastada de valores religiosos. Viria deste espanto a criação dos mais radicais grupos islâmicos no Oriente Médio. O menino de Terrorista se identifica com Sayyid e se transforma em um dos mais fiéis adeptos da idéia que uma sociedade degenerada como a norte-americana deve ser barrada. Updike dá uma cutucada naqueles que negam seu passado religioso e são absorvidos pela cultura liberal que respeita demais o extremismo místico. Deixa claro que nos dias de hoje não há lugar para os titubeantes. Todos têm responsabilidade por esta situação atual e especial, em que a barbárie espreita em qualquer esquina num possível campo de batalha urbano.

[Desencanto radical]

O Caçador de Pipas, mega-sucesso editorial, teve a sorte de ser lançado imediatamente após os ataques promovidos por Bin Laden. O público logo se identificou com a história de crianças cercadas pela repressão e o medo, pois passava pelo mesmo estado psicológico na época dos atentados. A versão do filme, dirigida respeitosamente por Marc Foster em ritmo de filme iraniano, é uma celebração da culpa que traz responsabilidade e um novo lugar no mundo para os expatriados, para aqueles que optaram em fugir de uma terra sem esperanças. O pós-comunismo, cenário anárquico que entregou o Afeganistão para os fanáticos muçulmanos - treinados devidamente pelos Estados Unidos - é o mesmo de Senhores do Crime, que também trata do pós-comunismo para afirmar que no desencanto político do mundo atual só resta a ética entre os humanos. David Cronemberg faz passar numa claustrofóbica Londres a história de uma parteira que se encarrega de dar um bom destino a uma recém-nascida, um motorista de mafiosos russos e o clã dos criminosos. Agora não estamos mais em tempos de esperar por uma ordem hierárquica superior, pela inteligência acadêmica, ou pelos critérios de justiça propostos por qualquer teoria das esquerdas. As ordens são dadas pelas regras do dinheiro, seja pelo trabalho, seja pela contravenção. Estamos entregues à nossa própria consciência, o que mostra a eclosão da histeria ecológica que certamente protegerá a humanidade da autodestruição por mais algum tempo.

[Torture porn]

Tortura é a regra. Seja por Jack Bauer em 24 Horas, nos filmes de terror atuais ou na vida real do Iraque e Guantánamo. E até mesmo nas terras distantis brasillis em qualquer esquina de sua cidade, dominada pelo PCC, pela droga ou pelos cartões corporativos. Praticamente todo o produto cultural de impacto atualmente traz cenas de tortura. Conseqüências da aspiração por vingança? Quando a vontade de destruir se impõe geralmente não cabe a tortura. A morte é rápida. A tortura surge quando se quer ver o sofrimento, a exposição, a humilhação do torturado. Está na Bíblia. De raízes pornográficas também vem A Espiã, de Paul Verhoeven. O diretor, que filma pouco - e ainda tem crédito na praça por ter feito Instinto Selvagem - repete a história da mulher predadora que emascula o macho. Aqui, talvez no alto de sua colorida e carregada proposta de cinema: no cenário da Segunda Guerra Mundial, uma jovem e exuberante judia sobrevive a todo custo passando bravamente por perdas de familiares, amigos e amores, dobrando até mesmo um oficial nazista que se entrega aos seus encantos, mesmo sabendo que é judia.

[Onde o fim não tem vez]

O ritmo de Onde os Fracos Não Têm Vez é todo preparado para seu final, um longo diálogo sobre a banalização da violência que desvia da trama principal e atordoa o espectador que esperava pelo acerto de contas. Na conversa entre um cansado xerife (Tommy Lee Jones) e um descrente colega, ainda mais cansado, ainda mais velho, a idéia é que algo se perdeu entre o conceito de bem ou mal. Na realidade contemporânea, a morte pode ser apenas um resultado de mera coincidência. Não há mais motivo para matar. Talvez nunca houvesse, mas parecia que existia, pelo menos até os anos 70 do século 20. Violência está para o ateísmo em épocas de ironias pós-contracultura. Camile Paglia acredita que pouco conseguimos aproveitar das conquistas da década de 1960. Virou um vale-tudo banhado por sexo, droga, pouco rock'n'roll e muito egoísmo disfarçado de individualismo cruel. Zodíaco, injustamente esquecido pelo Oscar tratou do assunto de forma soberba. Assim como em Onde os Fracos Não Têm Vez, em Zodíaco o fio condutor são as mortes causadas por um serial-killer. No fundo pouco importa quem seja, ou porque o faz, mas sim a indolência da sociedade que pouco se lixa a não ser pelo evento midiático. Alpha Dog de forma ainda mais realista, cruel e atual, usava a mesma tese, tratando da galera entediada, erotizada e drogada. Este também é o mundo de Gus Van Sant (Elephant, Last days e Paranoid Park).

[Desfazendo esperanças]

Sweeney Todd é um musical-ópera de quase 30 anos que o Brasil desconhecia. Agora podemos assistir à obra-prima de Stephen Sondheim. Para o barbeiro da Rua Fleet feito magistralmente por Johnny Depp não há saída para o humano vingativo. A perpetuação da vingança leva à destruição sem meta. Sangue Negro também carrega em interpretações exageradas para colocar no mesmo patamar da vingança a cobiça pelo poder e dinheiro. Pode haver certo prazer em fazer dinheiro, mas a perpetuação desta rotina em sacrifício do afeto só leva à destruição. Dos outros, de si mesmo. Das telas para o palco, numa platéia aconchegante, o mesmo tema é tratado em Prêt-à-porter 9, que comemora os dez anos da experiência do CPT (Centro de Pesquisa Teatral) do diretor Antunes Filho. No espaço próprio do Sesc Consolação de São Paulo, três pequenas peças, todas apresentadas em duplas que tratam do tédio, descrença e auto-abandono no cotidiano mais comum. Prêt-à-porter começa onde Sangue Negro acaba. Curiosamente A Moratória, também no Sesc Consolação (Teatro Anchieta) trata da decadência da tradição familiar neste texto de 50 anos. Em tom épico, ainda choca. É sufocante acompanhar o despedaçamento da "aristocracia" do café que simbolizava uma ordem conservadora do Brasil da década de 1920. A peça, encenada pelo sempre exato Grupo Tapa, é um retrato dos alienados que se arrastam pela esperança patética em restaurar uma ordem que não dá mais certo. A trama é simples e rascante. Um patriarca, típico "barão do café" sustenta o castelo de cartas em que foi transformada sua fazenda arruinada pela queda da bolsa em 1929. Endividado, espera por um empréstimo salvador que nunca chega. A família é sustentada por esmolas de uma tia pedante, mas realista e pela costura da filha que abdica de sua vida pessoal. O filho é alcoólatra e a mãe uma típica dona de casa, cuja atitude varia entre colocar-panos-quentes ou tapar-o-sol-com-a-peneira. O enredo é um desastre anunciado com a carpintaria de Jorge Andrade, o autor brasileiro que talvez melhor tenha retratado a decadência rural e o surgimento do Brasil urbano, povoado de herdeiros falidos.

[A morte é um compromisso solitário]

O médico Dráuzio Varella, em recente entrevista e no livro O Médico Doente (Companhia das Letras) conta que quando se achava à beira da morte pela febre amarela só queria ficar quietinho. Varella pontua que a angústia da morte que nos assola com certa freqüência é bem diferente da iminência da morte. É bem diverso o pavor da doença grave do de se encontrar em estado que aponta para o fim próximo. O médico e escritor, pela própria experiência como aquele que trata e recentemente como doente, percebeu que se entregava à morte quando se deu conta que esta se aproximava. Não valia à pena lutar. Qual é o limite para a resignação? O ser humano é o único animal ciente que vai morrer. É uma das primeiras e a mais devastadora constatação quando somos crianças e esse medo nunca mais nos abandona. A esperança de continuarmos sustenta os laços do afeto. É muito difícil mantermos as delícias do amor com aqueles que nos traem. Não pelo aspecto moral, mas pela surpresa e desencanto do sentimento que trazia uma confortante segurança, uma visão de futuro. Nossas escolhas amorosas também passam pela morte. Em Sangue Negro o pai afetuoso feito por Daniel Day Lewis se transforma num gélido e monstruoso empreiteiro do petróleo em que pesa o dinheiro pelo dinheiro, o acúmulo que nunca será compartilhado. E a morte vem em vida. Assim como nos ensina o médico: frente à realidade da traição só nos resta a resignação. E, se der... começar tudo de novo.

Devemos aceitar o que é impossível deixar de acontecer.
Coriolano, ato 5, cena 5
Shakespeare

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