Séries e TV

Artigo

Como American Horror Story mudou a TV

Prestes a começar seu quinto ano, a antologia criada por Ryan Murphy reacende o interesse do público por dramaturgias cada vez mais fechadas

06.10.2015, às 00H38.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H24

Existem algumas séries de TV que facilmente poderiam ser chamadas de pseudo-vanguardistas. “Vanguardistas” porque estão à frente de uma tendência e “pseudo” porque no final das contas – nesse mundão de Deus – ninguém está realmente fazendo nada de novo. Porém, no que diz respeito ao que se produz na televisão americana, sempre temos um ou outro título que se torna responsável por reviver o interesse do público pelo gênero ou estilo vigente.  

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Quando Arquivo X se tornou um sucesso, muitos procedurais começaram a usar mais histórias centrais que interligassem as temporadas. Quando Família Sopranos se tornou uma unanimidade, vários outros showrunners começaram a ter mais liberdade para criar em torno do conceito de amoralidade absoluta. Quando Lost transformou as narrativas em um diálogo direto com as capacidades intelectuais do espectador, ficou bem mais fácil apostar em ousadia. Naturalmente, as reproduções de um mesmo modelo – que já era cheio de referências – começaram a surgir incontavelmente e reorganizaram os objetivos comerciais.

Assim que o FX anunciou a chegada de American Horror Story no ano de 2011, não estava anunciando uma linguagem original. Mas, exatamente porque as antologias não eram parte do cotidiano do seriador regular, a sensação era de que estávamos diante de algo totalmente novo. E que, obviamente, começou a gerar investimentos na área a medida em que o sucesso foi estabelecido. Poderia ser que True Detective, Fargo ou American Crime viessem a existir mesmo que American Horror Story não tivesse chegado antes. Mas, sem dúvida, a boa recepção ao projeto de Murphy fez toda diferença nesse processo.

Mitologia Antológica

As séries chamadas “antológicas” ficaram mais conhecidas agora por terem temporadas fechadas com uma história linear e sem aberturas para continuações. Porém, quando o gênero nasceu (lá na primeira grande era de ouro da televisão) o nome também servia para designar séries em que os episódios também não tinham conexão alguma entre si. Eram histórias isoladas que compunham o tom de uma temporada. Esse é o caso de algumas das primeiras antologias de que se podem encontrar informações, Lights Out (1946) e Kraft Television Theatre (1947), ambas da NBC, uma começando no rádio e a outra na televisão. Uma focando no horror e a outra no drama, as duas estéticas que também fulguram no cenário contemporâneo dos produtos do gênero.

Alguns de vocês podem lembrar de antologias clássicas mais famosas como Alfred Hitchcock Presents (1963), Amazing Stories (1985) e The Twilight Zone (1959 – 1985 – 2002), todas essas citadas como projetos em que os episódios de uma temporada partiam de uma mesma premissa fantástica ou misteriosa, mas que não tinham uma linha central dramatúrgica. Os exemplos mais recentes, como Fargo e True Detective tem histórias centrais por toda uma temporada, mas ainda não compartilham de um detalhe que torna American Horror Story ainda mais interessante.

O conceito de antologia da série de Murphy acaba esbarrando na produção teatral nascida no século XV, quando trupes de artistas viajavam por vilarejos e cidades apresentando seu repertório de espetáculos cômicos formado sempre pelos mesmos atores, quase sempre vivendo os mesmos personagens, construindo o que chamamos academicamente de Commedia dell’Arte. É claro que no caso de American Horror Story os mesmos atores vivem personagens diferentes, ainda que no fim das contas o horror seja a base de todas as tramas.

Seria como comparar o mundo de AHS com os grandes grupos de teatro que estão em atividade no mundo. Aqui no Brasil, por exemplo, a Cia Armazém tem um elenco fechado, aberto a participações, com atores que aparecem em uma peça e não na outra e que causam uma grande ansiedade em seus espectadores assíduos, que querem sempre saber “como aquele ator ou aquela atriz estará no personagem daquele ano”. Com isso, a experiência do público transcende a atenção apenas à dramaturgia e direção, e passa a ser uma apreciação deleitosa e divertida, intrigante, do trabalho do ator. Essa experiência também ultrapassa o valor comercial que engole as implicações de se consumir televisão no nosso tempo e vira uma dialética entre arte e apreciador.

A Hora do Horror

Além de abrir os caminhos para o gênero antológico, que aliviou o público de enredos longos demais que adiam prazeres e revelações por tanto tempo, American Horror Story também foi responsável por colocar o horror em pauta nas produções televisivas. Ainda que esse gênero tenha grande importância e visibilidade no cinema até hoje, com seus monstros e sobrenaturalidades banhadas de sangue, na televisão a abordagem não era intitulada. Sempre houve elementos do horror em séries como The X-Files, Supernatural e The Walking Dead. Mas o que Murphy e seus parceiros queriam era que o projeto fosse uma caracterização abrangente dessa estética.

Histórias de horror americanas não são o mesmo que histórias de terror americano. Vale ressaltar que a diferença é notória e importante para entender o conceito por trás da série. Enquanto o terror lida mais com o medo psicológico e com o jogo do susto, o horror valoriza o choque visual, as criaturas fantásticas e o gore (mortes com muita violência explícita). Se você vai ao cinema ver A Bruxa de Blair está muito mais próximo do terror (o medo do que não se vê) do que quando vai ver Jogos Mortais (o desconforto visual da dor). Podem haver elementos de um ou do outro em ambos os gêneros, mas é a contagem de elementos e a valorização da estética que determinarão o resultado final.

Grande parte do sucesso de American Horror Story pode ser atribuído justamente a elegantização do horror, que é por essência, um tipo de abordagem menos polido de concepção e filmagem. Embora os elementos de uma história de horror estejam presentes nas temporadas, elas são imbuídas de uma direção que privilegia o drama e a referência pop. Esse detalhe incorpora ao show um valor estético muito mais condizente com o que é considerado relevante pela crítica especializada de hoje. O horror que flerta com o inverossímil das imagens brutais, ganha a emoção do espectador porque ele acredita na verdade das interpretações, que apoiadas num time de muito peso, transformam o “fantástico” e o “absurdo” em verdadeiro.

A temporada Hotel estreia no próximo dia 07 e será a primeira sem a presença cult de Jessica Lange (que ajudou muito a envolver o projeto de seriedade). Sarah Paulson, Evan Peters, Lily Rabe e possivelmente Frances Conroy, retornam como nomes intactos dessa trupe, que já abriga Kathy Bates, Denis O’Hare e Emma Roberts como participações muito recorrentes. Lady Gaga toma o posto de protagonista e já podemos ver pela abertura liberada antecipadamente, que Murphy quer demarcar muito bem esse  momento de ruptura. Com Gaga no elenco a insinuação de mais exploração conceitual através da imagem fica muito forte.

Em fevereiro de 2016 Ryan Murphy inicia outra antologia, a icônica American Crime Story, que contará os detalhes de crimes famosos na cultura americana. Até lá, outros projetos antológicos surgirão e outros vigentes já terão se tornado veteranos. A “precursora” American Horror Story terá passado por sua prova de fogo, enfim. O hotel comandado por Gaga pode ser a ousadia imagética do horror levada até seu maior extremo, eclipsando os órfãos de Lange... De fato, permanece a soberania de um gênero quase esquecido pela televisão ao redor do mundo... Agora todos querem ser horrorizados pela atmosfera grotesca e pervertida de Mr. Murphy.

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