Séries e TV

Crítica

Aquarius - 1ª Temporada | Crítica

Série se apoia no nome de Charles Manson para buscar audiência, mas já começa cheia de problemas narrativos

27.06.2015, às 13H30.
Atualizada em 02.11.2016, ÀS 21H03

Nas primeiras horas de 9 de agosto de 1969, um velho Ford parou na entrada de uma mansão situada na rua Cielo Drive, em Los Angeles, onde residiam, por ocasião, o cineasta Roman Polanski e sua esposa grávida, a atriz Sharon Tate. De dentro desse Ford saíram três mulheres e um homem. Eles cortaram o fio do telefone, pularam a cerca e invadiram a casa. Sharon Tate estava sem o marido na residência, mas acompanhada de três amigos. Todos foram mortos com dezenas de facadas, num caos sangrento que, logo nas primeiras luzes da manhã, começou a se tornar um dos crimes mais horripilantes e famosos da história.

O background pode não ser indispensável, mas é relevante. Livros, filmes, biografias, documentários, todo tipo de produto até hoje busca a recriação ou compreensão dos motivos que levaram um bando de hippies a cometerem crimes tão hediondos. Esse ano a NBC resolveu produzir Aquarius, criada por John McNamara e estrelada por David Duchovny, recém-saído de seus vários anos a frente de Californication. Duchovny retornou ao seu papel íntimo com as forças da lei e incorporou o detetive Sam Hodiak que, sem saber ainda, segue no rastro de um sujeito chamado Charles Manson (Gethin Anthony), que pouco a pouco angaria um monte de meninas desgarradas de suas famílias para compôr o que será conhecido no futuro como "A Família".

Foi Manson a mente por trás dos assassinatos de Sharon Tate e seus amigos (e também de mais um casal no dia seguinte). Ele era um criminoso recorrente, dono de uma grande capacidade de manipulação verbal e filosófica, que cercou-se de personalidades moldáveis e convenceu seu séquito a matarem em nome dele. A crueldade dos crimes (a palavra "porco" foi escrita com o sangue de Tate na porta da frente da casa) e a motivação torpe levaram esse caso a ser estudado como uma referência do status social vigente na Califórnia dos anos 1960 e como um evento catalisador que reforçou a cultura do medo no inconsciente coletivo do cidadão americano. Manson lidera um bando de hippies que diziam pregar o amor... Mas era com sangue e frieza que eles escreviam sua história.

Uma Série Sobre o Quê?

Aquarius não precisa de tanta informação para ser assistida pelo público regular. Dramaturgicamente falando, ela funciona sozinha. Esse é, inclusive, um de seus pontos ambíguos. Positivo no aspecto isolado e deficiente no contexto histórico. A série foi vendida para a audiência como uma investida policial nos primeiros anos de recrutamento de Manson. Todos os trailers e material de divulgação reforçavam que esse seria um programa sobre como Manson seduzia suas garotas.

Tudo começa quando Emma (Emma Dumont) foge de casa para se livrar das brigas e castrações dos pais. Numa festa, ela acaba sendo apresentada à Manson e resolve seguir os passos dele. Como lhe era bem característico, o psicopata avaliava muito bem quais seriam as meninas com histórias parentais mais complicadas, quais eram as mais vulneráveis, muito mais passíveis de comprarem o discurso catequizador. Com Emma funcionou e ela partiu para se juntar ao grupo. Seus pais então procuram a ajuda do amigo e detetive Sam que, junto com seu parceiro Brian (Grey Damon), investigam a estranha e crescente quantidade de moças que parecem acreditar nas insanidades que Charles Manson tem a dizer.

Esse é um ponto de partida muito interessante, já que foram essas seguidoras que assassinaram pessoas sem nenhuma razão, apenas para cumprir os delírios de seu líder. Porém, Aquarius começa a derrapar quando tridimensiona seus propósitos e busca um formato procedural que soa apenas como uma forma de economizar orçamento e driblar a ordem histórica dos eventos. Assim, o programa se divide em uma narrativa central (ligada à chegada de Emma) e várias pequenas narrativas secundárias que, na maioria das vezes, não estão contextualizadas com o mundo de Manson, aumentando ainda mais a sensação de que são duas bases criativas distintas.

A decisão criativa de inserir esse elemento deve ter partido da certeza de que, para muitos, a investigação de um crime vale sempre mais, mesmo que soe como muitas que já foram feitas. O problema é que no caso de Aquarius, vimos uma série ser vendida como uma investigação sobre Manson e a temporada passou muito mais da metade de seu tempo investigando crimes de outras ordens. De fato, a trajetória de Manson, muitas vezes, é apenas uma coadjuvante.

Manson's Girls

Precisamos admitir, contudo, que mesmo cientes de que não investiriam tanto na evolução da relação de Manson com suas meninas (por mais da metade da temporada elas tem pouquíssimas cenas), os roteiristas se preocuparam com o mínimo de contextualização histórica. Além do núcleo formado por Emma e seus pais, a série também criou uma boa base de exploração dos conflitos raciais da época. Esse é um ponto importante, porque será o racismo patológico de Charlie a ser usado por ele como bode expiatório de suas decisões homicidas. A personagem Charmain (Claire Holt) também tem a interessante função de discutir as questões de reafirmação do gênero feminino dentro daquela sociedade machista. É dela - ao descrever um tiroteio para o chefe - uma das melhores sequências da série.

O problema é que Aquarius ensaia muito e se aprofunda pouco. Temos uma temporada irregular, com bons momentos apenas. Nenhum grande pecado dramatúrgico ou estilístico é cometido, mas estamos sempre com aquela sensação de algo mais poderia ter sido feito. A série acaba, então, sendo passível de comparação com outros produtos históricos ou fantásticos que não sustentam sua ideia por razões orçamentárias. Em Terra Nova as tramas se apegavam ao simplório porque não havia dinheiro para explorar o território como se devia. Em Drácula inventavam razões estapafúrdias para que o vampiro andasse a luz do sol porque provavelmente não poderiam gravar só a noite e fazer a história andar com essa limitação. Em Under the Dome inventaram um ilógico sistema ambiental e meteorológico que permitisse que a cidade sobrevivesse à redoma, quando de fato, no livro, toda a ação ocorre em apenas uma semana...

Enfim, em Aquarius se fala muito pouco em Manson e seus contatos no showbizz, porque o programa não tem condições de recriar a efervescente Los Angeles do final da década de 1960. Então, lá vai Sam investigar crimes aleatórios em ambientes fechados e lá vai Charlie permanecer 95% da temporada no mesmíssimo cenário da Casa Espiral. Não é decisão dramatúrgica, é efeito de uma mal disfarçada limitação.

O caso mais grave é com relação às seguidoras do antagonista. Aquarius fez tanta publicidade sobre ser uma série que falaria de Manson e suas garotas que quando percebemos a inexpressividade delas, dá pra considerar abandonar o navio antes do naufrágio. Katie (Tara Lynne Bar) e Sadie (Ambyr Childers) são as mais recorrentes nos episódios e são dois nomes de grande peso nos crimes que acontecerão dali a dois anos. A frieza de Katie e a crueldade de Sadie são notórias em qualquer pesquisa sobre o Helter Skelter (como ficou conhecida a série de crimes após descobrir-se que Manson usava a canção homônima dos Beatles como inspiração para a tal guerra racial que ele queria iniciar ao tentar fazer os negros serem culpados pelos assassinatos). Porém, as duas são muito pouco exploradas, mesmo que tomadas de potencial (Sadie tem uma grande cena apenas no penúltimo episódio).

Em alguns pontos podemos sentir o verdadeiro flerte do programa com a sensação de torpor vivida naquele momento histórico da cidade. Em algumas cenas vemos as garotas de Manson olharem o mundo com aquele olhar louco. Em alguns momentos a violência latente surge e faz a série crescer. Aquarius se esforça... Usa títulos das canções de Manson como títulos dos episódios, apresenta uma trilha sonora bem pesquisada e busca ousadia nos ângulos de cena que reforcem o estado dopado constante em que viviam os membros "da família". Mas, ao mesmo tempo, não se preocupa em preparar as convergências: Manson em busca da fama, usando as garotas para isso, guerra racial, xenofobia, amor livre contrastando com pouco amor ao direito do próximo de estar vivo. Naquela noite, quando Sadie, Katie e Tex mataram Sharon Tate e seus amigos, eles diziam que matar era o maior ato de amor de um ser humano para com o outro... É essa loucura que precisamos ver em Aquarius. É a forma como uma ideia imbecil como essa vira uma lei entre os seguidores de um homem que prega o amor enquanto planeja o extermínio.

Nota do Crítico
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