Séries e TV

Crítica

The Leftovers - 1ª Temporada | Crítica

Damon Lindelof volta a provocar o mundo com um drama que valoriza extremos emocionais e apenas flerta com o mistério

12.09.2014, às 14H00.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H47

Antes de escrever esse texto, tentei me propôr um desafio: falar sobre o novo trabalho de Damon Lindelof sem invocar aquele que é o maior fenômeno de sua carreira e também uma das séries que mudou a história da televisão: Lost. Pensei nesse desafio porque uma das coisas mais complicadas na hora de falar sobre The Leftovers é conseguir com que ela seja uma obra avaliada de modo individual, detentora sim do estilo de seu showrunner, mas completamente independente na sua estrutura. A maior parte do público, no entanto, se divide entre usar Lost como argumento de defesa ou de ataque e acabam perdendo a experiência de ver a nova série com os olhos pelos quais ela merece ser vista.

Baseada no livro de Tom Perrota (que também assina alguns roteiros), a série começa quando o mundo relembra os três anos daquilo que ficou conhecido como Dia da Partida Repentina. Num fatídico 14 de outubro, 2% da população mundial simplesmente desapareceu da face da terra, sem explicações e sem avisos. Imediatamente todos começaram a tratar o acontecimento como o referido "arrebatamento bíblico", que seria a abdução coletiva de todos os justos que merecessem escapar da agonia do pré-apocalipse. A questão é que entre esses 2% da população havia uma quantidade considerável de pessoas com um perfil nada condizente com tamanho privilégio, o que acabou sendo responsável por instaurar na humanidade uma sensação de desnorteio.

Tom Perrota optou por situar o começo da história três anos depois da Partida Repentina, porque esse é ponto em que as pessoas passaram da euforia inicial e começaram a tentar restaurar a rotina de suas vidas. A Mapleton retratada na série é uma cidade melancólica, dormente, que se arrasta para conseguir respirar depois de tamanha tragédia, o que acaba se revelando também uma metáfora para todos aqueles que perderam alguém naquele dia, sem saber para onde foram, porque foram e como foram. Por mais impensável que possa parecer a ideia de experimentar um fenômeno tão forte, a partir do momento em que nada acontece em seguida, a contemplação da dor precisa dar lugar à sobrevivência, e é isso que esses personagens tentam redescobrir: o propósito de viver após ter virado uma sobra.

A Culpa Remanescente

The Leftovers é uma série cheia de analogias e metáforas e o primeiro desafio intelectual que ela promove está na forma como arrumou sua dramaturgia. Justin Theroux vive o xerife Kevin Garvey, que poderia ser considerado um sujeito de sorte quando pensamos que ele não perdeu nenhum dos membros de sua família no 14 de outubro. Porém, o piloto da série mostra exatamente o contrário - o dia da Partida não afetou somente os que perderam alguém. A força de um acontecimento como esse desestrutura tão fortemente a ordem estabelecida das coisas que cada um reagiu de acordo com as próprias fraquezas. Kevin tinha esposa e filhos coordenados numa configuração que saiu ilesa do arrebatamento, mas que se desmontou inteiramente por causa dele.

O filho mais velho, Tom (Chris Zylka), abandonou a faculdade e começou a seguir uma espécie de profeta, dos muitos produzidos pelo ocorrido. A filha adolescente, Jill (Margaret Qualley), entrou num estado de catatonia social que foi imensamente piorado depois que a mãe Laurie (Amy Brenneman), abandonou a família e juntou-se a uma organização chamada Os Remanescentes Culpados, um grupo de pessoas que dedica seus dias a impedir que a sociedade esqueça o que aconteceu no 14 de outubro, usando para isso de qualquer artimanha que possa manipular as emoções daqueles que lutam para continuar vivendo.

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Os Remanescentes são, inclusive, um dos pontos mais controversos da série. Boa parte dos detratores do programa enxerga nesse núcleo a maioria dos problemas de clareza e entendimento que The Leftovers provocou desde sua estreia. Mudos, sempre fumando e andando de branco, os RC dificilmente conseguem tocar os espectador, que os odeia imediatamente. Mas, pensando friamente, esse é um aspecto da dramaturgia da série que tem imenso apelo climático. Basta que usemos a empatia para avaliar algo tão destruidor quanto esse pseudo-arrebatamento. Uma espécie de intervenção sobrenatural categórica e aleatória, que soa divina e maldita ao mesmo tempo e que derruba aspectos importantes da ordem social e da fé. Algumas pessoas, diante de algo dessa magnitude, podem ter seus interiores revirados das maneiras mais torturantes, se tornando incapazes de se seguir em frente como fariam antes. O grupo dos Remanescentes Culpados é todo formado por esse tipo de pessoa.

A questão é que se citarem Deus ou não, há uma fé que rege o grupo e essa fé é no compromisso de impedir que o resto da sociedade se reajuste, já que para eles o 14 de outubro representa uma força propulsora de mudança. Se fomos obrigados a lidar com a perda dessa forma cruel, eles acreditam que a nova ordem do mundo será construída em cima da ausência de laços, de amarras emocionais, caminhando todos nós para o estágio de tabula rasa, de folha em branco. Por isso eles vigiam aqueles que tentam voltar a viver naturalmente, como Liv Tyler, que vive a jovem Meg. Ela serve à trama exatamente com esse propósito: mostrar que alguém que se força a retomar a rotina do mundo pode ter na figura dos RC um constante confrontamento com o que se quer tanto esquecer. The Leftovers é, antes de tudo, uma história sobre culpa e memória. Se você não pode superar o 14 de outubro, viva para lembrá-lo todos os dias e transforme sua vida num altar de adoração sombria a esse mistério.

Quem Somos Nós?

Bastou um nome: Damon Lindelof. A partir disso, metade das impressões sobre o que ele tinha a oferecer já estavam pré-estabelecidas. Apesar de lutar muito para afastar The Leftovers daquilo que o lançou, Lindelof foi fiel a si mesmo, entregando-se a uma premissa que tinha um mistério e que fazia parte dessa era da televisão que já está tomada por narrativas que sempre partem de algum senso mitológico. O livro de Perrota não se faz de rogado em deixar claro que o mistério do arrebatamento não é o mais importante e isso, de certa forma, protege Lindelof de qualquer futura crítica à falta de respostas satisfatórias. Toda essa primeira temporada, entretanto, flerta com algumas doses de suspense, revelando que a intenção da HBO era unir o texto denso de Perrota ao senso de criatividade de Lindelof. Isso fica claro momentos quando a contemplatividade da direção se encontra com pequenos detalhes que provocam a curiosidade do público.

O choque inicial foi dado quando a premissa misteriosa foi suprimida pela direção dramática muito intensa do piloto. Mas já nessa primeira semana o roteiro nos conduzia para o que vou ousar chamar de "pistas", como os animais da cidade ficando agressivos, a figura misteriosa de Dean (Michael Gaston), os sonhos e surtos de personalidade de Kevin, da mesma forma como acontece com toda boa mitologia referencial (coisa que não foi só Lost que fez), esses detalhes provocaram aquilo que pode ser chamado de "Estudo de Episódio", que é quando você corre pra internet pra encontrar mais pistas que estejam escondidas em letras de músicas, citações bíblicas e até - no caso de um dos episódios dessa temporada - na capa de uma edição antiga da revista National Geographic.

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Embora os desaparecimentos de pessoas não-merecedoras tenha colocado em dúvida o ato da fé, as referências bíblicas estão presentes na história o tempo todo. Tudo isso é extremamente fascinante, porque a sociedade se entrega a uma letargia chocada, incapaz de recusar a existência de Deus, mas também incapaz de compreender os motivos dele. Porque sobramos? A sensação de todos eles é de que as sobras foram entregues a um inferno pessoal constante, ironicamente correlacionada ao inferno categórico, literal, e ao mesmo tempo somente metafórico. Tudo queima, mas mesmo assim você precisa ir a escola, trabalhar, fazer compras... Sob essa perspectiva, não tem como não entender o tamanho da dor e pesar que tomou conta da vida daquelas pessoas.

Somos Lembranças Vivas

A temporada também foi especificamente orquestrada, se afastando da narrativa central em pequenos monólogos ocasionais que mostravam um pouco de personagens bastante interessantes, como Matt (Christopher Eccleston), um padre que quer provar para a cidade que o que aconteceu não foi um arrebatamento e Nora (Carrie Coon), a única pessoa a perder todos os membros da família. Além deles, a líder dos RC, vivida por Ann Dowd, foi responsável por momentos fortíssimos do ano, sempre dialogando com Kevin entre os dois extremos dessa moeda: esquecer e viver ou lembrar e se transformar?

Cheia de emoção, momentos em que a trilha sonora foi emblemática, diálogos mordazes e uma direção agressiva - muitas vezes chamada de pretensiosa -  The Leftovers buscou identidade o tempo todo. Muito espertamente, primeiro fomos apresentados a todos os horrores e latências que viviam esses personagens, sempre tomados daquela dor reclusa, muito bem representada pelos gritos silenciosos e ações caóticas correndo em câmera lenta, sempre ao som de alguma canção absolutamente conectada à trama. Tudo para depois, lá no penúltimo episódio, acompanharmos estupefatos os eventos pré-arrebatamento, quando os problemas das pessoas eram ocultos pela rotina tediosa da vida, interrompida bruscamente quando aqueles que estavam ali na frente subitamente desaparecem, sem tempo para despedidas, eternizando aqueles momentos como aqueles em que todo e qualquer outro impulso deu lugar somente a culpa. Esses intervalos para quebrar a narrativa central acabaram ajudando muito a promover comparações com os flashbacks de Lost, mesmo que o intuito deles fosse bem diferente. Mais do que ajudar a montar uma narrativa, eles pretenderam sempre ampliar a nossa compreensão acerca da dor.

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[Cuidado, possíveis spoilers do último episódio abaixo!]

No episódio final, o compromisso dos Remanescentes Culpados em "fazer os outros se lembrarem" ganha a dimensão absoluta, quando cópias dos que foram levados assombram Mapleton, obrigando-a a sair de seu estado dormente, transformando em ira todos os impulsos de fuga que haviam sido lapidados até aqui. Se a trama funciona como um decreto dos venenos da memória na vida das pessoas, o último episódio do ano leva isso ao apogeu da ação e reação, deixando pouco - muito pouco - a ser especulado para a já confirmada segunda temporada.

Não é como se a série fosse inacessível, mas tampouco ela é fácil. Nesse mar de produtos nascidos de bizarros cruzamentos contemporâneos, The Leftovers conseguiu um feito invejável: nasceu e se desenvolveu com uma específica personalidade. Personalidade essa que nada tem a ver com Lost ou com qualquer outra série de mistério. É uma personalidade que parte do imponderável. Se o que aconteceu soa inconcebível, incapaz de ser digerido pela nossa mente aprisionada às regras, então o produto desse choque precisa ser igualmente incômodo, devastador. The Leftovers é uma história sobre uma sociedade quebrada por aquele que é o seu pilar principal, a fé. Preteridos da grande partida, aqueles personagens se contorcem em busca de novos propósitos, doloridos pelo abandono e corroídos pela culpa. A "morte" é pior, sempre, para aqueles que ficam. Para aqueles que sobram.

Nota do Crítico
Excelente!

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