Cena de Ted Lasso

Créditos da imagem: Apple TV+/Divulgação

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O futebol está em crise; Ted Lasso tem a solução

Mesmo com o esporte em segundo plano, romantismo da série resgata paixão e idealismo

Omelete
7 min de leitura
20.10.2021, às 16H18.
Atualizada em 31.08.2023, ÀS 12H08

É curioso que o presidente da FIFA, Gianni Infantino, tenha escolhido o futebol americano como base de comparação para justificar a ideia de realizar a Copa do Mundo de Futebol a cada dois anos, e não quatro, como é a norma atual. "A cada ano tem o Super Bowl, Wimbledon ou a Champions League e todos estão emocionados e esperando. Por que não ter uma Copa do Mundo a cada dois anos?", indagou o cartola. Os motivos contrários à ideia são muitos, mas como resumiu o ex-capitão da seleção alemã e campeão mundial em 2014, Philipp Lahm, uma boa resposta é: porque "grandes eventos esportivos carecem de paciência e tempo. E encurtar o ciclo [do maior evento esportivo do mundo] confirmaria que o esporte se tornou só sobre dinheiro".

A curiosidade na comparação com o Super Bowl é porque, além de absolutamente esdrúxula (trata-se de um campeonato nacional, portanto é óbvio que seria disputado anualmente), remete à piada que alicerça uma das comédias esportivas mais relevantes da atualidade: Ted Lasso. A série de TV ganhadora do Emmy tem como premissa a ideia de que um técnico de futebol americano sofreria para se adaptar ao futebol, uma vez que o nome dos esportes é de longe a maior similaridade entre eles. Essa curiosidade, entretanto, se converte em ironia quando pensamos mais a fundo no que a produção estrelada por Jason Sudeikis comunica em relação ao esporte bretão: uma mensagem de humanidade e compaixão que bate de frente com a realidade.

Pode não parecer, mas o futebol moderno agoniza silenciosamente. Com a pandemia da covid-19 paralisando atividades esportivas por quase um ano, os efeitos na inflacionada economia da modalidade são inegáveis, especialmente em seu polo global, a Europa. Como reportado pelo Fórum Econômico Mundial, as cinco maiores ligas de futebol do mundo (todas localizadas no Velho Continente) deixaram de ganhar cotas de transmissão televisiva que eram chave para a manutenção de suas operações sem déficits financeiros. O resultado é um cenário de inadimplência sem perspectiva de estancamento, o que fere o poder de compra e manutenção de grandes clubes e deixa clubes menores à beira da extinção. Isso sem falar na realidade de outros continentes, incluindo a América do Sul e o Brasil.

O problema maior, entretanto, é que clubes de futebol não são negócios lucrativos, fazendo mais sentido como ferramentas de soft power (para o aumento de influência política e social em determinado meio) ou opção arriscada de investimento a longo prazo. Com o crescimento do setor estancado pela crise da pandemia, a segunda opção acaba esgotada, o que coloca todo um modelo de negócio sobre reavaliação no contexto do "novo normal". Para piorar, existe uma grande dúvida quanto à capacidade do esporte em manter-se no mesmo nível de relevância com o passar dos anos. Ao menos financeiramente, o futebol parece ter atingido seu auge em algum ponto da década passada, em um mundo totalmente diferente do que existe hoje.

Não é à toa que a FIFA e outras entidades reguladoras do esporte trabalham com mudanças, mirando um maior apelo comercial para os anos que virão. Da ideia de ter a Copa do Mundo disputada de dois em dois anos até o cancelado projeto do presidente do Real Madrid, Florentino Pérez, em organizar uma liga exclusiva para os mais ricos clubes europeus, a grande dúvida dos cartolas europeus é saber se um esporte que viu um aumento constante de 8% de rendimentos por 20 anos até a virada da última década ainda tem margem para crescer. Uma preocupação movida não só pela busca pelo lucro, mas porque é essencial para manter os alicerces de uma estrutura que vê jogadores como Lionel Messi e Neymar recebendo quase US$70 milhões por ano só em salários.

Só que o prognóstico não é nada empolgante, porque o cenário só pode remediado com grandes mudanças estruturais, o que exigiria uma colaboração generalizada entre polos empresariais de objetivos distintos, além de uma evidente concessão financeira em prol da redistribuição de recursos entre clubes. Ainda que esse cenário de sonhos fosse consolidado, a relação do esporte com o público seguiria estremecida. Com grandes mudanças, coloca-se em risco a já desgastada relação dos torcedores com um esporte que cresceu como negócio, mas encolheu como paixão. A preocupação com a Copa do Mundo, por exemplo, é um resultado do enfraquecimento de apelo do futebol de seleções nacionais. Com a globalização e a concentração de renda do esporte no continente europeu, são cada vez menos os países que conseguem se manter relevantes e competitivos nesse cenário. Para que, então, gastar dinheiro acompanhando a modalidade?

É sintomático que, nesse contexto de "pós-futebol" que vivemos, crescem sentimentos como a nostalgia e o saudosismo. O movimento cultural brasileiro de louvor ao futebol praticado nos anos 1990, por exemplo, é mais do que mera admiração às habilidades de Ronaldo, Bebeto e Roberto Carlos; é saudade de uma realidade que não existe mais e talvez nunca mais existirá, na qualos recursos do esporte não haviam se tornado tão escassos dada a concentração por alguns pouquíssimos clubes. Quando Romário podia deixar o Barcelona aos 25 anos e, levando debaixo do braço o prêmio de Melhor do Mundo, ir jogar no Flamengo só porque estava com saudade da praia.

Toheeb Jimoh como Sam Obisanya em Ted Lasso
Apple TV+/Divulgação

É esse sabor de romantismo que volta a campo em Ted Lasso, mesmo que a série do Apple TV+ priorize os dramas de seus coloridos personagens em suas vidas pessoais àqueles vividos dentro das quatro linhas. Na segunda temporada, encerrada em grande estilo neste mês de outubro, os principais exemplos dessa visão apaixonada e apaixonante sobre o futebol vieram por meio de Sam Obisanya (Toheeb Jimoh). O lateral direito do fictício clube AFC Richmond, repensado como ponta após a chegada do treinador-título da série, protagonizou um protesto contra o patrocinador master do clube que prontificou a agremiação a quebrar o contrato. O motivo? As práticas escusas da empresa no continente africano. Alguns episódios mais tarde, recusou uma proposta financeiramente irrecusável de um carismático magnata, só por se deixar cativar pela paixão que inspirava em jovens fãs de seu futebol.

Sob o prisma da vida real, ambas as atitudes e seus desdobramentos na série estão mais descolados da realidade que o hilário rumor de que Brett Goldstein é uma projeção de CGI, não uma pessoa real. Ainda assim, a ciência de que houve um tempo no qual decisões sobre futebol podiam e eram tomadas com base em bom senso e paixão, não só em projeções financeiras, faz disso um refúgio para fãs de futebol cansados do esporte-negócio. Toda a temática sobre saúde mental abordada no segundo ano da série também fala demais à realidade, que no contexto brasileiro vê jovens de origem pobre ascendendo socialmente de forma meteórica e tendo de sustentar as pressões de familiares, amigos e legiões de fãs; todos vendo, nas altas cifras pagas aos garotos, justificativas para abuso.

Como não se lembrar da trágica morte de Almir Leite Ribeiro, pai de Adriano, o Imperador? Com a perda, o atacante brasileiro mais promissor de sua geração viu ruir também sua saúde mental. Em 2009, aos 27 anos de idade, o craque chegou a anunciar um afastamento do esporte por “ter perdido a alegria de jogar futebol”. Diferente de Romário, a saída dele da Europa não se deu puramente pela vontade de retornar ao Brasil, mas pela dor e desespero do luto não o permitirem outra alternativa que não se cercar de seus familiares e amigos. Recentemente, até Neymar protagonizou um desabafo no qual citava a pressão psicológica inerente ao esporte e afirmava estar cansado, projetando a próxima Copa do Mundo como a sua última, aos 30 anos de idade.

Assim, ainda que seja graças ao poder ilimitado da ficção, ver em Ted Lasso como um clube da segunda divisão inglesa coloca em segundo plano suas ambições financeiras em prol das pessoas que o fazem ser o que é, traz de volta o sentimento-base do futebol. É um chavão antigo que ele é o esporte mais democrático do mundo, mas não há nada de democrático quando o dono da bola escolhe quem joga e como. O que a divertida, calorosa e desarmante série faz é justamente reafirmar que o mais importante não é o dinheiro, as vitórias ou sequer o jogo em si, mas o encontro de pessoas em nome de uma paixão capaz de unir a todos. De certa forma, portanto, Sudeikis e companhia apresentam a fórmula para salvar o futebol moderno: humanidade. Uma pena não existir nenhum técnico norte-americano, bigodudo e idealista para puxar esse bonde e colocá-lo para andar.

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