Cenas de Avatar: O Caminho da Água e Star Wars: A Ameaça Fantasma (Reprodução/Montagem Omelete)

Créditos da imagem: Cenas de Avatar: O Caminho da Água e Star Wars: A Ameaça Fantasma (Reprodução/Montagem Omelete)

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Avatar 2 é o A Ameaça Fantasma de James Cameron, e nós podemos provar

Como George Lucas, Cameron fez filme admirável e idiossincrático - mas alienante

Omelete
7 min de leitura
15.12.2022, às 19H00.
Atualizada em 24.12.2022, ÀS 15H35

Foi difícil espantar a sensação de familiaridade durante a sessão de Avatar: O Caminho da Água. O sentimento de déjà vu cinematográfico, no entanto, não se deve ao fato de o filme marcar o nosso retorno ao planeta Pandora, treze anos depois do primeiro Avatar. Ao invés disso, a lembrança que O Caminho da Água despertou pareceu mais antiga, e vinda de uma galáxia um pouco mais distante.

Explico: Durante as 3h15 do filme de James Cameron, se solidificou a impressão de que este era o Star Wars: Episódio I - A Ameaça Fantasma do diretor - e eu juro que tenho argumentos para isso!

Deles e para eles

James Cameron e George Lucas (Reprodução/Montagem Omelete)
James Cameron e George Lucas (Reprodução/Montagem Omelete)

Não há dúvida que James Cameron e George Lucas estão entre os cineastas mais bem-sucedidos e morfologicamente importantes para o blockbuster americano, mas é interessante notar em que momento de suas carreiras os dois fizeram O Caminho da Água e A Ameaça Fantasma, respectivamente.

Para Lucas, a retomada da saga Star Wars chegou, em 1999, quando ele já não tinha mais nada a provar. Bilionário com os lucros da trilogia original e intocável em Hollywood pela influência de suas produções (incluindo também Indiana Jones, Em Busca do Vale Encantado e Willow) e empreendimentos, ele não permitiu que nenhuma sensibilidade que não fosse a sua se infiltrasse no processo de realização da trilogia prequel.

Para Cameron, enquanto isso, O Caminho da Água veio… bom, quando ele já não tinha mais nada a provar. Bilionário com os lucros de Titanic e do primeiro Avatar, intocável em Hollywood pela influência de suas produções (incluindo a franquia Exterminador do Futuro e Alita: Anjo de Combate) e empreendimentos, ele até dividiu o crédito de roteiro com colegas como Rick Jaffa e Amanda Silver, mas qualquer um que conhece a sua filmografia sabe que O Caminho da Água traduz perfeitamente suas obsessões.

O segundo Avatar e o “primeiro” Star Wars têm em comum, portanto, serem obras de - muito além de cineastas consagrados ou “visionários” - magnatas com carta-branca para gastar quantidades obscenas de dinheiro do estúdio sem nenhuma supervisão ou preocupação de como o produto final será absorvido pelo público. Estes são filmes feitos por eles e para eles, essencialmente, e essa proximidade entre os dois fica clara mesmo que seus temas e fixações sejam bem diferentes.

Jesus vs. baleias

Cenas de Avatar: O Caminho da Água e Star Wars: A Ameaça Fantasma (Reprodução/Montagem Omelete)
Cenas de Avatar: O Caminho da Água e Star Wars: A Ameaça Fantasma (Reprodução/Montagem Omelete)

A Ameaça Fantasma dá corpo à construção mitológica que sempre foi essencial a Lucas quando transforma o jovem Anakin Skywalker (Jake Lloyd) em uma versão intergaláctica de Jesus Cristo, completo com a sua própria concepção imaculada. É a extrapolação das jornadas do herói que Lucas emprestou dos seriais espaciais do começo do século XX, filtrada pelo cinismo de um autor mais velho que deixou de acreditar na pureza do heroísmo, das instituições, dos mestres, senadores e chanceleres do mundo.

O Caminho da Água, enquanto isso, devolve o ambientalismo de Cameron para onde ele se sente mais confortável: os oceanos. Não é a toa que, no filme, conhecemos uma nova espécie de Na’vi que baseia seu modo de vida nas águas de Pandora - cenário de outros filmes do diretor, como O Segredo do Abismo e Titanic, o oceano é também uma obsessão ativista de longa data dele, que produziu vários documentários sobre exploração e preservação marinha no decorrer das décadas.

Ao submergir grande parte da ação deste segundo filme de Avatar, portanto, Cameron não só se permite apresentar novidades conceituais e visuais ao público, como também desperta em si mesmo um protecionismo mais virulento, quase cômico. A caricatura dos objetivos militares e econômicos da humanidade surge mais forte aqui, e o troco que os vilões recebem por subestimar os oceanos é mais brutal - em suma, O Caminho da Água é mais direto e firme em sua visão do homem como algoz da natureza, do equilíbrio, da paz, da própria sobrevivência.

Spider Binks

Cenas de Star Wars: A Ameaça Fantasma e Avatar: O Caminho da Água (Reprodução/Montagem Omelete)
Cenas de Star Wars: A Ameaça Fantasma e Avatar: O Caminho da Água (Reprodução/Montagem Omelete)

Outra coisa que o Lucas de 1999 e o Cameron de 2022 têm em comum é serem artistas fora do seu tempo. Quando A Ameaça Fantasma foi lançado, ele foi de certa forma o marcador temporal de um período de transição para a fantasia e o sci-fi cinematográficos, que se afastaram aos poucos (fracasso após fracasso nas bilheterias) dos exageros anabolizados e arquetípicos dos anos 1980 e 1990 para se aproximar de uma construção corporativa de franquias meticulosamente planejadas para apelar ao público mais amplo possível.

Lucas, com seus tropos nada sutilmente emprestados de obras ainda mais removidas da sensibilidade contemporânea, não se encaixava nem um pouco nesse cenário de transição. Foi uma mudança de paradigma em Hollywood que provocou efeitos adversos muito bem documentados, da degradação e repetição técnica e narrativa dos filmes comerciais contemporâneos ao desaparecimento progressivo das histórias originais dos multiplexes ao redor do mundo. O outro lado dessa moeda é que, bom… Kevin Feige jamais deixaria Jar Jar Binks acontecer.

Não que as narrativas da Hollywood atual sejam desprovidas de estereótipos racistas e xenófobos, ou de personagens de CGI irritantes (mal-)pensados para apelar ao público de infantil, mas é difícil imaginar essa figura arquetípica do bom selvagem desastrado e estúpido aparecendo de forma tão insistente e predominante em uma grande franquia da atualidade… o que torna ainda mais curioso o caso de Spider (Jack Champion), um dos novos personagens de Avatar: O Caminho da Água.

Embora nos seja apresentado como um rapaz esperto e fisicamente capaz, Spider é também a versão do filme para o “menino-lobo” Mogli - ou melhor, “menino-macaco”, como é constantemente chamado por outra personagem (e não, o apelido nunca deixa de soar incômodo). Criado em Pandora, ele anda pelas florestas com vestimentas mínimas, o cabelo ajeitado em dreads e listras azuis feitas com tinta pelo corpo branco, imitando muitos dos trejeitos dos Na’vi e ansiando por nada mais do que o acolhimento da família Sully.

Não é novidade a relação problemática que Avatar tem com a colonização, o ponto de vista branco no qual a história se centra, mesmo com a melhor das intenções de moralização. No primeiro filme, Jake era o salvador branco do povo indígena, assimilado a um mundo que não é o seu e transformado em líder, mesmo diante de tantos líderes fortes que aquela comunidade já tinha. Aqui, a ansiedade de pertencimento de Spider poderia se converter em uma paródia do “aliado” performático da luta não-branca, mas Cameron não tem a sutileza ou a perspectiva para isso - nas mãos dele, o garoto é só uma sincera (mas ingênua) tentativa de evocar a cooperação entre espécies.

Afinal, fã ou hater?

Cenas de Star Wars: A Ameaça Fantasma e Avatar: O Caminho da Água (Reprodução/Montagem Omelete)
Cenas de Star Wars: A Ameaça Fantasma e Avatar: O Caminho da Água (Reprodução/Montagem Omelete)

Nos muitos anos que se passaram desde que vi A Ameaça Fantasma pela primeira vez, minha concepção dele se transformou. Não que o diálogo terminalmente inepto de Lucas incomode menos hoje em dia, que a trama estagnada em um único cenário seja menos frustrante, ou que a espera pela alucinante cena da corrida de pods seja menos interminável, mas o distanciamento e a perspectiva do que Hollywood se tornou depois dele fez com que ficasse mais fácil enxergar, até nas deficiências do filme, o valor de uma obra feita sem concessões pelo artista que a concebeu.

Eu suspeito que Avatar: O Caminho da Água vá passar pelo mesmo processo. Já hoje é possível apontar, como colegas críticos apontaram com muita destreza, as formas nas quais o filme de Cameron reencontra cacoetes da velha Hollywood que fazem falta, ao invés de causar estranheza: a encenação da ação e a iluminação das cenas é mais pensada, mais clara; o uso dos chavões do gênero é mais desavergonhado, pela pura consciência de que eles funcionam; o 3D aparece como ferramenta auxiliar na imersão que guia a ficção científica como gênero, e não como truque barato; a falta de cinismo que caracteriza a narrativa está há muito perdida no cinemão americano.

Por ser tão pessoal e tão confiante de que uma mente singular, de apenas um homem, é capaz de traduzir sua visão para as mentes de milhões, O Caminho da Água é por vezes frustrante, alienante. Assisti-lo navegar pelos oceanos de Pandora no ritmo truncado das divagações e obsessões de Cameron, em sua húbris de autor isolacionista, nem sempre é uma experiência tranquila - mas, de uma forma ou de outra, é impossível não se pegar admirando o seu comprometimento consigo mesmo, à sua entrega irrestrita ao que impulsiona este artista a contar esta história.

É o que costumávamos chamar de cinema, não é?

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