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Andarilho - Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Um delírio filmado à beira da estrada

31.10.2007, às 22H00.
Atualizada em 01.11.2016, ÀS 12H05

Existe uma espécie de "clichê rodoviário" quando se filma estradas: botar a câmera rente ao asfalto quente e capturar o mormaço fundindo veículos e pessoas com o chão, como uma ilusão de ótica que derrete objetos. Cao Guimarães pegou esse lugar-comum e o subverteu em Andarilho.

Que o quinto filme do cineasta mineiro tenha sido escolhido para abrir, em 2006, a 27a. Bienal de Arte de São Paulo é um sinal da proposta do longa-metragem - uma experiência audiovisual que está mais próxima da vídeoinstalação do que da narrativa clássica. A idéia de que o espaço e as pessoas se fundem - o mormaço no asfalto como símbolo - é o ponto de partida para que se filmem em Andarilho as cenas mais inusitadas de margem da estrada.

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E "inusitadas", aqui, é o adjetivo mais genérico que imaginei, diante de algumas imagens que beiram o delírio.

Guimarães instalou o tripé da sua filmadora digital de alta definição em pontos da BR-251, BR-135 e BR-122, mais especificamente nos trechos do nordeste mineiro. Com ela, acompanhou ao acaso o vaivém de caminhões e de pessoas, e se deteve em três "personagens" (personagens entre aspas porque Andarilho não deixa de ser um documentário): três mendigos.

O primeiro, que abre o filme, é o típico mendigo-profeta, barbudo, cabeludo, de gestos largos. Filósofo das coisas etéreas, ele, em suas palavras, "invoca o infinito" para vagar pelos acostamentos enquanto discorre sobre a enrabada que Deus deu nos adventistas. O segundo é o mendigo-louco - fala sozinho com fúria e não deixa a câmera se aproximar. O terceiro é o mendigo-auto-suficiente, que puxa a sua carrocinha pelo acostamento, lugar onde come e dorme sem ser importunado.

Andarilho não tem nenhum viés paternalista, caso você tenha desconfiado. Longe do que se convencionou chamar estética da fome, Cao Guimarães faz de cada plano, cada enquadramento, um discurso independente. Há significado no plano aéreo geral que mostra uma estrada de terra reta ao lado da estrata asfaltada curva. Há significado na geometria das rochas de um açude no qual o homem é um corpo torto estranho. Se não houver significado na cena do berro pós-dialético que o mendigo-profeta solta com o por-do-sol ao fundo, pelo menos há uma bela catarse.

Guimarães trabalha com o mesmo processo que fez de Gente da Sicília (1998), de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, um dos melhores filmes dos últimos dez anos: confunde o espectador na hora de dividir encenação e registro documental e termina fazendo-nos crer que a realidade - ainda que seja a realidade dos mendigos das estradas mineiras - é muito mais hipnótica e enfeitiçante do que imaginávamos.

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