Uma San Diego Comic-Con atípica, mas ainda apaixonante

Em meio à paralisação histórica de Hollywood, o público da SDCC voltou a abraçar o que tornou o evento uma meca para nerds de todo o mundo

Nico Garófalo Reportagem

Ok, serei o primeiro a admitir que a organização da San Diego Comic-Con não teve a melhor sorte nos últimos anos. Depois de não ter evento presencial em 2020 e 2021 por causa da COVID-19 e ver seu pavilhão um pouco esvaziado em 2022, a edição de 2023 foi afetada pelas greves dos roteiristas e atores, que paralisaram Hollywood de forma conjunta pela primeira vez desde 1960 e, por consequência, esvaziaram o lendário Hall H de seus tradicionais grandes anúncios. Dez anos atrás, as ausências de Kevin Feige, James Gunn, Kathleen Kennedy e seus respectivos estúdios talvez até desanimassem os fãs apaixonados, que passam horas e horas na fila em busca das sagradas pulseirinhas para entrar nos maiores painéis da feira. Mas, mesmo que as greves não tenham permitido a presença de grandes astros nos palcos do centro de convenções, o que se viu foi o reencontro em massa de uma comunidade que não se juntava dessa forma calorosa desde 2019.

Sendo minha primeira cobertura in loco da San Diego, fiquei preocupado de encontrar fãs indiferentes, desanimados pela improbabilidade de tirar fotos ou ganhar autógrafos de seus ídolos das telonas. O que vi, no entanto, foi uma união de pessoas que, livres das filas quilométricas, se sentiram livres para aproveitar cada estande, ativação e, olha só, quadrinista que a SDCC ofereceu em 2023.

E, convenhamos, a situação dos grandes estúdios da cultura pop também proporcionou o momento perfeito para que o público praticamente desse de ombros para a programação vazia do Hall H. Afinal, é possível contar nos dedos as produções da Lucasfilm e do Marvel Studios que realmente empolgaram o público nesses últimos dois ou três anos, e mesmo o aguardado reboot da DC nos cinemas ainda está em estágios iniciais — até porque já não se esperava nada muito grande após Gunn e Peter Safran anunciarem o elenco de Superman: Legacy. Com o hype já praticamente nulo para novidades cinematográficas, os quadrinistas e artistas do Artists’ Alley voltaram a assumir o posto de estrelas do principal evento de cultura pop do mundo, algo que, para alguém que ama gibis, foi lindo de ver.

Não importa se a mesa era de pesos-pesado, como Rob Liefeld, Nicola Scott e dos dois Toms (Taylor e King), ou de nomes um pouco menos badalados, como Zoe Thorogood e Jeremy Adams, praticamente todos os artistas que compareceram à feira formaram, ao menos uma vez, uma enorme fila de fãs. Mesmo longe do Artists’ Alley, foi possível perceber o movimento “herdado” do Hall H. “A gente nunca tinha visto uma fila daquele tamanho lá fora”, afirmou Marcelo Bassoli, da Iron Studios, na quinta-feira (20), primeiro dia do evento. “Aqui dentro, quando abriu o pavilhão, [ficou] muito, muito cheio. Hoje é quinta, e dia de semana não costuma ser tão cheio, e estava parecendo sábado. Então acho que o fato de não ter as atrações do Hall H trouxe a galera que já tinha comprado ingresso aqui para dentro.

Arquivo Pessoal

San Diego volta a respirar a Comic-Con

Mais do que só o centro de convenções, San Diego parece ter voltado 100% ao clima da Comic-Con. Aproveitando o pouco tempo livre que tivemos entre nossa chegada no dia 18 e nossos painéis derradeiros no domingo, eu, Carol Costa e nosso querido ex-omeleter Ryan Smallman (que coincidentemente também comparecia à sua primeira SDCC) aproveitamos para explorar a vizinhança do Gaslamp Quarter, bairro que concentra os hotéis e restaurantes mais visitados pelos nerds. Das padarias aos trens, poucas eram as estruturas que não estavam estampadas com anúncios de Good Burger 2, adesivos de Super Mario Bros. ou com cardápios personalizados para os cinco dias de evento.

Diferentemente do ano passado, em que o mundo ainda começava a reabrir após a pandemia, 2023 viu a 5th Avenue encher de cima a baixo de cosplayers, fãs, jornalistas e organizadores das mais diversas empresas, que lotavam igualmente ativações a céu aberto e bares. Já na quarta-feira, dia da Preview Night, era possível ver “tribos” adotando alguns desses lugares como ponto de encontro — nós, por exemplo, ficamos entre um pub irlandês e um restaurante mexicano especializado em pratos com lagosta, onde dividimos pratos e copos com alguns amigos/concorrentes de outros sites brasileiros.

Frazer Harrison / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP

Como torcedor ferrenho de futebol e vizinho de um dos três grandes estádios de São Paulo, a atmosfera do Gaslamp Quarter nos dias de evento me lembrou o meu bairro em dias de jogos decisivos. Assim como acontece por aqui semanalmente, o entorno do centro de convenções de San Diego ficou praticamente monotemático, mas extremamente animado quase 24h por dia. Havia por lá um senso de comunidade que, você deve concordar, às vezes parece inexistente nas redes sociais, mas que se fez muito presente assim que esses fãs se encontraram pessoalmente para dividir aquele momento único.

Seguindo mais um pouco na linha futebolística, acho mais do que justo comparar a alegria de um cosplayer que tinha seus trajes elogiados à de um torcedor celebrando um gol. Da mesma forma que ver a bola no fundo da rede é o ponto alto de uma partida e recompensa os 90 minutos de estresse que passamos entre o pontapé inicial e o apito final, era claro que esse reconhecimento à arte de se tornar seu personagem favorito dava uma alegria incomparável aos seus criadores. Pedir para que eles posassem para fotos e vídeos, que seriam compartilhados em páginas internacionais (pelo menos para eles), então, era praticamente como levantar uma taça.

Pelo menos ao longo daqueles cinco dias, desavenças pessoais, estresses do trabalho e mesmo dificuldades financeiras pareciam se esvair em meio àquela sensação de pertencimento que se criou no bairro todo. Mesmo lojistas e garçons, muitos fantasiados como personagens por ordens “de cima”, acabavam sugados pelo clima fraternal e puxados para participar de fotos e conversas sobre cultura pop entre um prato e outro. Ok, talvez outros anos pudessem ficar mais lotados com fãs esperando — inutilmente ou não — que os astros do Hall H dessem as caras nas ruas, mas é indiscutível que, em 2023, San Diego voltou a viver intensamente a principal Comic-Con do mundo.

Nico Garófalo/Omelete

Sem astros, mas ao lado dos atores

Mesmo que não pudessem acompanhar debates entre astros no Hall H, o público da SDCC23 ainda deu um jeito de, pelo menos um pouco, ficar perto de seus ídolos. Ao contrário do que poderia se esperar de alguém que pagou caro por ingressos antecipados e viu os estúdios abandonarem a convenção semanas antes de ela acontecer, os presentes mostraram um apoio massivo às greves do WGA e do SAG-AFTRA, que há semanas pedem por melhores pagamentos e condições de trabalho para profissionais da indústria. Sexta-feira, por exemplo, amanheceu com membros do sindicato dos atores levando faixas, placas e broches para as imediações do evento, onde várias pessoas do público se juntaram aos gritos de guerra dos manifestantes.

Se você procurar online e falar com alguém [do público geral], vai perceber que todos estão do lado do SAG-AFTRA e do WGA e que os únicos que não estão são os CEOs dessas empresas”, disse Steve Weintraub, editor-chefe do Collider. “Você sabe que as pessoas que trabalharam em séries [disponíveis no streaming] não estão sendo pagas. É o mesmo com músicos no Spotify, a mesma coisa acontece em toda a indústria de streaming. (...) Isso que está acontecendo, de profissionais serem pagos 30 centavos de dólar [em residuais], nós sabemos que está errado. Não conheço ninguém que não esteja apoiando os sindicatos que pedem por pagamentos justos.

Dentro do pavilhão, também não faltou apoio nem discussão em relação ao estado atual da indústria. No chão de feira, por exemplo, vários artistas, cosplayers e exibidores traziam um ou outro acessório que remetia aos sindicatos, enquanto painelistas reforçaram a todo momento a importância da luta atual travada pelos grevistas. Mais do que isso, houve um cuidado para que a discussão de uma das reivindicações-chave dos grevistas fosse apresentada de forma clara ao público, como o painel AI in Entertainment: The Performers Perspective, que, embora focada no uso da inteligência artificial como uma ferramenta perigosa para trabalhos criativos, lembrou que a ganância corporativa é o verdadeiro grande vilão da vida contemporânea — dentro e fora da “bolha” de Hollywood.

Kevin Winter/Getty Images/AFP

Embora os quadrinistas e artistas americanos, talvez os grandes astros da SDCC23, não tenham um sindicato para chamar de seu, não falta um apoio mútuo entre eles. Muitas mesas do Artists’ Alley contavam com as famosas “caixinhas” de doações, que seriam revertidas a quadrinistas aposentados e que precisam de ajuda financeira para ter um mínimo de segurança financeira. Essa fraternidade da indústria, no entanto, não necessariamente aponta para um futuro sindicalista na cena.

Não vejo acontecendo um sindicato de quadrinistas. O que vejo são alguns movimentos”, opinou Felipe Cagno, co-criador da HQ The Few and Cursed. “Você tem algumas panelinhas e elas são muito separadas umas das outras. Então você tem a galera dos super-heróis, tem a galera da Image [Comics], tem a galera dos independentes. Dentro dos independentes, você tem os independentes dos independentes.” Para o roteirista, a diferença de rendimento financeiro que existe entre quadrinistas independentes e aqueles que trabalham para grandes editoras é outro grande impeditivo para uma organização sindical. “O cara que é, sei lá, estrela da Marvel e da DC, vai ter muito mais condição de pagar a anuidade de um sindicato, mas o que tá fazendo o independente do independente, não.

A opinião de Felipe é compartilhada por Jeremy Adams, quadrinista de Lanterna Verde e Flash e membro dos sindicatos dos roteiristas e de animações. “Seria incrível se conseguíssemos fazer algo assim. Mas não acho que seja possível, é um mercado muito díspar. E esse modelo está estabelecido há muitos anos. A vantagem é que agora seria mais fácil do que se ainda tivéssemos apenas [Marvel e DC]. Agora temos uma enormidade de empresas de quadrinhos e possibilidades infinitas para que criadores façam seus próprios conteúdos. No fim, acho que [a indústria] se baseará em criadores pegando suas propriedades intelectuais nas próprias mãos, e conseguindo um direito de posse sobre elas.

Os comics voltam a dominar a Comic-Con

Conforme já foi dito, artistas e quadrinistas se tornaram os grandes astros da SDCC23. De multivencedores do Eisner Awards a autores de fanarts diversas, poucos eram os expositores do Artists’ Alley que não viram suas mesas formarem filas de pessoas interessadas em investir seus preciosos dólares em pôsteres e autógrafos. “Alguns de nós não fomos treinados para esse movimento todo. Tenho ficado realmente cansado todos os dias”, brincou Adams. “Mas tem sido maravilhoso. É como era nos anos [pré-COVID], só que mais cheio.” Para o quadrinista, o esvaziamento do Hall H fez com que a Comic-Con voltasse a dar uma importância maior aos, bem, comics. “Há um foco muito maior em gibis, animações e coisas assim. (...) Então tem sido muito, muito divertido.”

O pavilhão esteve mais cheio por mais horas por dia, porque as pessoas não tinham tantos painéis para ir”, comentou Weintraub. “As pessoas não passavam tanto tempo no Hall H nem no Ballroom 20. (...) Toda vez que desci pro chão da feira, estava uma loucura. Os expositores com quem falei disseram que estavam vendendo muito mais que o esperado, porque tinham mais pessoas lá para comprar do que era no passado. A convenção foi uma loucura [mesmo sem astros]. Ainda estava lotada. Só não tinha as celebridades de Hollywood que costumam estar lá.”

Não que o Artists’ Valley da CCXP não fique anualmente lotado. Mas a disposição de seu equivalente da SDCC me passou sensações diferentes da que sinto passeando pelas mesas aqui em São Paulo. Em San Diego, o espaço é bem mais claustrofóbico do que por aqui e, por mais que isso cause um trânsito impressionante de pessoas, ele praticamente te obriga a prestar atenção em cada peça ofertada e a se arrepender de não ter levado dinheiro o bastante para comprar pelo menos um pin ou adesivo de cada artista. Mesmo no domingo, teoricamente o dia mais “tranquilo” do evento, as filas monstruosas inclusive me fizeram desistir de pegar o autógrafo de Tom King, um dos meus autores favoritos, já que a espera para encontrá-lo virava pelo menos duas esquinas do Alley.

Se o público voltou a favorecer os quadrinhos, a organização da Comic-Con International não deu esse mesmo favorecimento aos artistas, mantendo a mesma divisão de espaço (ou falta de) dos outros anos. “A gente não percebeu diferença nenhuma. Acho que [a oficialização das greves] foi muito recente, né? Então eles nem tiveram tempo de fazer nada de diferente”, contou Felipe. Ainda que as greves tenham mudado o cronograma e os planos do público, esse tratamento repetido ao de outras edições já é algo esperado da organização. “Eles repetem a mesma coisa todo ano. Tipo, os stands estão sempre nos mesmos lugares, então, se a gente voltar ano que vem, eles vão colocar a gente no mesmo lugar.

Felizmente, nada dessa “indiferença” da organização foi transmitida para o público. O stand de Felipe e Fabiano Cagno, por exemplo, recebeu fãs de todas as nacionalidades e idades possíveis. Alguns desses visitantes, aliás, se animaram com a presença da Carol, inspiração para o design da Ruiva, protagonista de The Few and Cursed, e que até sentou para autografar algumas edições do gibi.

Nos espaços de selos maiores, como DC, Marvel, Image e Dark Horse, a história era a mesma. De Jim Lee a Leah Kilpatrick, todos os quadrinistas que levaram seus trabalhos junto às editoras foram visitados por uma verdadeira multidão de leitores, com alguns (eu incluso) mal conseguindo esconder a felicidade de ter a chance de trocar algumas palavrinhas com ídolos da nona arte.

Como jornalista, cobrir uma San Diego Comic-Con era meu maior sonho profissional. Mas, como nerd, leitor assíduo de gibis e fanboy assumido de vários dos nomes que marcaram presença na edição deste ano, estar lá justamente no ano em que os artistas voltaram a ocupar os holofotes do evento superou qualquer sonho e se tornou o grande orgulho da minha vida — pelo menos até minha próxima cobertura.

Publicado 01 de Agosto de 2023
Edição de texto Beatriz Amendola
Coordenação Jorge Corrêa