O Omelete publica um diário da 58. edição do Festival Internacional de Cinema de Cannes. O evento começou dia 11 de maio e segue até o dia 22 na cidade francesa que dá nome ao prestigiado festival.
A edição 2005 recupera os grandes nomes que faltaram no ano passado. A lista inclui em competição os consagrados David Cronenberg (com A history of violence), Atom Egoyan (Where the truth lies), Amos Gitai (Free zone), Michael Haneke (Caché), Jim Jarmusch (Broken Flowers), Gus Van Sant (Last days), Lars von Trier (Manderlay) e Wim Wenders (Dont come Knockin), colocando também Sin City, de Frank Miller e Robert Rodriguez, no páreo.
O diário está sendo produzido pelo omelenauta Filipe Luna! Confira!
Dia 5 (15/05)
Tenho notado neste festival uma quantidade muito
grande de filmes que falam sobre personagens perdidos e sem objetivos na vida.
Imagino que toda pessoa se sinta assim em algum momento, eu mesmo já
passei por isso, mas acho interessante que esse assunto esteja com tanta evidência
hoje em dia. Curiosamente, essa busca não é existencialista -
com questionamentos do tipo quem somos? de onde viemos? pra onde vamos?
Não... muito pelo contrário. Tais produções mostram
a vida cotidiana de maneira muito realista, até dura demais às
vezes. Dois dos filmes que assisti hoje falavam de modo diferente sobre esse
tema: Falscher Bekenner (algo como Falso Confessador)
de Christoph Hochhauser e Volksne Mennesker
de Dagur Kari.
Não havia mais ingressos disponíveis quando cheguei, por isso
não pude assistir ao mexicano Batalla en el Cielo,
de Carlos Reygadas. O que acabou sendo algo bom, já
que depois só ouvi críticas negativas sobre o filme. Fiquei, então,
restrito aos filmes da mostra Un Certain Regard, o que não é nada
mau, dadas as propostas diferenciadas que essa mostra apresenta. Em geral, são
filmes que causam reações mais extremas no público, do
tipo ame ou odeie. Difícil é ficar impassivo diante
do que foi apresentado.
Falscher Bekenner |
The King |
Voksne Mennesker |
O primeiro filme que assisti foi o alemão Falscher Bekenner. Conta a história de um jovem que acaba de sair da escola e tenta entrar no mercado de trabalho pressionado pelos seus pais. Vivendo uma vida suburbana e letárgica, ele começa a procurar prazer em bizarras relações com motoqueiros homossexuais e, principalmente, assumindo falsamente a culpa por acidentes de carro ou incêndios que vitimaram pessoas em sua cidade. O que incomoda um pouco no filme é que, aparentemente, o diretor se utiliza dele como uma sessão de terapia. Tentando exteriorizar os questionamentos que o pertubam. No entanto, ele compensa isso com um afiado e irônico senso de humor. As cenas das entrevistas de emprego são engraçadíssimas e mostram como as perguntas padronizadas das seleções tratam o ser humano como idiota.
O segundo filme foi The King,
de James Marsh, novo filme estrelado pelo mexicano Gael Garcia Bernal.
É uma crítica muito forte aos cristãos fundamentalistas
do chamado Bible Belt (Cinturão da Bíblia)
dos Estados Unidos. Elvis é um filho bastardo do pastor
vivido por William Hurt que volta em busca do pai que nunca
conheceu. Sua chegada nessa nova familia provoca uma nauseante tragédia
grega que não vale a pena ser relatada. Se você estiver disposto,
confira. Quem sabe consiga tirar algo do filme.
Depois de dois filmes tão pesados, precisava de algo para arejar a cabeça.
E assim fui ver a comédia dinamarquesa Voksne Mennesker,
Dark Horse em inglês. Foi a primeira comédia que assisti
no festival e o filme que mais gostei até agora. É a história
de um jovem grafiteiro que vai se virando para conseguir dinheiro e levar a
vida. O filme tem um quê de Charlie Chaplin, já que
o protagonista é o protótipo do anti-herói. Um enfermeiro
que quer ser juiz de futebol, uma mãe tarada, a balconista que vai trabalhar
movida a cogumelos alucinógenos são apenas alguns dos bizarros
e divertidos personagens desse engraçado e despretensioso filme. Foi
ovacionado ao final da exibição, mas devemos levar em conta a
grande quantidade de dinamarqueses presentes.
Quando deixei o cinema, encontrei a Croisette em pandemônio. Era a exibição
de Star Wars - Episódio III e George
Lucas levou o pacote completo: uma orquestra tocava a trilha do filme
enquanto Samuel L. Jackson, uma careca Natalie Portman,
Hayden Christensen, diversos soldados imperiais e ele, Darth
Vader, desfilavam pelo tapete vermelho. Não posso negar que
senti uma pontinha de inveja dos sortudos que entravam na sala. Paciência...
até porque eu tinha uma festa para ir. Essa foi promovida pelo Festival
de Cinema de Locarno e foi, de longe, a melhor que fui até agora.
Queijos, frios e vinhos da melhor qualidade, além de um delicioso animal
(que até agora nao sei se era peru ou porco mas, honestamente, quem se importa?)
e um fantástico risoto. Assim fica muito fácil trabalhar.
Dia 4 (14/05)
É impressionante a quantidade de pessoas
que passam o dia nas imediações do Palais du Festival
atrás de ingressos para os filmes. Nas sessões noturnas isso piora
ainda mais. São dezenas de pessoas vestidas em traje de gala esperando
que alguém desista de assistir aos filmes na última hora. Até
as pessoas credenciadas se sujeitam a micos como esse. Se você não
conseguiu reservar seu ingresso, a organização apresenta a opção
de esperar, adequadamente vestido, numa das entradas do Grand Theatre Lumière
e, caso sobrem assentos para a sessão, eles te deixam entrar. É
muita humilhação para pouco glamour. Afinal, nem direito
de cruzar o tapete vermelho esses retardatários têm... afinal,
isso atrapalharia as celebridades. Ainda nem me passou pela cabeça passar
por essa vergonha... mas não vou dizer que nunca faria isso, afinal,
amanhã tem exibição de Star Wars: Episodio III - A
vingança dos Sith. Mas haja cara de pau...
Curiosidades à parte, quando cheguei à bilheteria do Palais
hoje pela manhã achei que tinha dado sorte e conseguiria assistir aos
dois filmes que queria da competição oficial. Havia ingressos
para os dois, mas a mocinha da bilheteria só iria me dar um - às
vezes falta um pouquinho de Brasil nessa excessiva organização.
Entre Election de Johnnie To e Cache
de Michael Haneke, fiquei com o último.
Sulanga enu pinisa |
Como o filme só começava à tarde, tive tempo para mais um da mostra Un Certain Regard. O disponível era Sulanga Enu Pinisa (hein?), do diretor singalês Vimikthi Jayasundara. O título traduzido para o inglês ficou The Forsaken Land (A Terra Abandonada). Do Sri-Lanka eu só conheço a cantora/MC MIA, mas achei que valia a pena arriscar. O enredo do filme é a historia das pessoas que vivem nos confins do Sri-Lanka, terra esquecida pelos homens e abandonada por Deus. Convivem nesse tedioso cotidiano com a brutalidade do exército, num pais em eterna guerra civil, e com a falta de perspectiva e objetivos. O diretor passa essa idéia baseando o filme inteiro nas imagens: são comuns intervalos de vários minutos sem qualquer diálogo. O ritmo do filme é lento, mas ele não chega a ser arrastado. Mesmo assim, isso incomodou muita gente que se retirou antes do fim da sessão (fato que parece comum por aqui...). Mas trata-se de um filme muito bonito visualmente. Não é por acaso que está indicado para o prêmio de melhor fotografia.
Cache |
Parei para um rápido almoço e,
em seguida, fui assistir a Cache, uma co-produção
França/Áustria/Alemanha. Daniel Auteil (O
closet, O Adversário) e Juliette Binoche (Perdas
e Danos, O Paciente Inglês) interpretam o casal que começa
a ser atormentado por desenhos bizarros e fitas com imagens de sua casa feitas
por um estranho. Suas vidas começam a cair aos pedaços e, conforme
as ameaças aumentam, o casal fica mais próximo de uma crise nervosa.
Essa é a grande qualidade do filme, que consegue criar uma grande tensão
no espectador com uma ameaça que não se materializa na tela. É
um filme feito para incomodar, uma característica do diretor que às
vezes exagera e deixa as situações um pouco forçadas. Mas
vale a pena ver como ele leva os personagens e o público ao limite de
seus nervos.
Depois dessa amalucada alternância entre tédio e tensão
estava precisando relaxar um pouco. Para minha felicidade, descobri que hoje
era o dia de uma festa do Brasil e prontamente tomei meu rumo em direção
ao local. Chegando lá fiquei decepcionado. Festa murcha, pouca gente,
música brasuca clichê, Rubens Ewald Filho, certo... Como os aperitivos
eram de graça, decidi ficar mais um pouco e admirar a vista do mar. Quando
comecei a pensar em ir, fui surpreeendido pela hostess que começava
a colocar todo mundo para fora. É, parece que aqui em Cannes até
festa do Brasil tem hora para acabar.
Dia 3 (13/05)
Quando pensava em Cannes sempre tinha em mente que veria por aqui um desfile constante de celebridades pela Croisette subindo o tapete vermelho. Ao chegar aqui, encontrei, sim, um monte de celebridades. Porém, não faço a menor idéia de quem sejam! É freqüente nas ruas a imagem de pessoas sendo paradas pelos fotógrafos, sorrindo e tendo sua imagem registrada. E eu me perguntando: Mas quem diabos é esse? Nada das celebridades que conheço. Essas aí só aparecem mesmo durante à noite, nos grandes eventos. Mas para vê-las é necessário chegar cedinho e guardar lugar nas laterais dos tapetes vermelhos... e esse é um mico que não pretendo pagar.
Last days |
A principal atração de hoje foi a exibição de Last Days, novo filme de Gus Van Sant - vencedor da Palma de Ouro em 2003 por Elefante. Trata-se da visão do diretor sobre os últimos dias de uma estrela do rock suicida, declaradamente inspirada na vida (ou melhor, morte) de Kurt Cobain, ex-líder do Nirvana. O músico é interpretado pelo novo queridinho dos filmes de arte, o ator americano Michael Pitt (que fez Os sonhadores de Bernardo Bertolucci, entre outros). Sua interpretação justifica o hype... é realmente muito boa. Parece que Cobain reencarnou na telona.
Minha expectativa para o filme era enorme, mas isso sempre acontece quando o assunto é um filme sobre a música pop. Ainda mais este, que conta com a participacao do casal Kim Gordon e Thurston Moore, respectivamente baixista e guitarrista da banda nova-iorquina Sonic Youth, icones do indie rock. A primeira, aparece rapidamente. O outro é consultor musical do filme. A premissa é interessante e original: mostrar a confusão que formou-se na cabeça do jovem músico rebelde e sua crescente relutância em aceitar a própria fama, sentimento que acabou culminando em seu suicídio.
O jeito de contar a história é semelhante ao empregado pelo cineasta em Elefante: cruzar histórias paralelas sem uma seqüência linear do tempo. Porém, os planos e cenas não têm o mesmo brilhantismo do trabalho prévio de Van Sant e o filme deixa no espectador uma sensação de que faltou alguma coisa. Também é difícil tirar uma mensagem do filme, mas talvez isso não seja algo negativo afinal.
Nordeste |
Passado o alarde da manhã, pude conferir durante a tarde mais um filme da mostra Un Certain Regard. Intitulado Nordeste, do diretor argentino Juan Solanas, ele foi, até agora, o que mais me agradou por aqui. É uma historia sobre uma francesa que deseja adotar um recém-nascido e vai parar no interior da Argentina em sua procura. O que mais me impressionou foi a honestidade com que o diretor trata seus personagens. Por ser um filme que trata de assuntos complicados, como o aborto e o tráfico de crianças, há uma certa expectativa de que surjam na tela alguns julgamentos e pensamentos pré-concebidos. Mas, felizmente, nada disso aparece e sua ausência força o espectador a pensar e rever suas opiniões sobre o tema. E não há problema algum em usar a cabeça um pouquinho!
A mostra Un Certain Regard deixa registrado mais uma vez o bom momento pelo qual passa o cinema latino-americano. Estar tão bem representado, tanto em quantidade (são dois filmes mexicanos, um argentino e dois brasileiros entre os 22 selecionados) como em qualidade, na mostra que busca novos olhares sobre o cinema é algo bastante significativo. Tomara que esse reconhecimento internacional de qualidade, por tratar-se de um festival tão importante, proporcione melhores condições para a produção cinematográfica brasileira e sul-americana.
Dia 2 (12/05)
- Bonjour! Pardon monsieur, no Match
Point for you. Assim começou meu segundo dia no festival:
às oito da manhã no Palais du Festival tentando conseguir
ingresso para assistir à exibição de Match
Point, novo filme de Woody Allen. Pior é
que eu tinha preparado uma introdução bacana pra vocês sobre
o diretor americano, falando sobre a minha enorme admiração por
esse gênio da comédia, entre outras coisas. Tudo bem... fica para
um outro dia. Aparentemente, não é muito facil conferir Woody
Allen na França. A concorrência é enorme!
Kilometre zero |
Felizmente, o dia ainda reservava agradáveis surpresas. Entrei pela primeira vez, andando pelo tapete vermelho e tudo, no Grand Theatre Lumière. Considerado o melhor cinema do mundo, o local é a principal sala de exibição do festival. É lá também onde as celebridades posam para os fotógrafos nas sessões de gala e onde são exibidos todos os filmes da competição oficial, além dos principais filmes das mostras. Estava lá para ver o Kilometre Zero do diretor Hiner Saleem. O filme se passa no Iraque em 1988 e conta a história de um cidadão curdo que tenta fugir do país, mas é impedido por sua mulher que deseja ficar no Iraque para cuidar de seu pai doente. Assim, ele acaba recrutado pelo exercito de Saddam Hussein e vai lutar na fronteira do Irã. Seu desespero para se livrar do exército é tão grande que ele fica tentando ser atingido na perna durante os tiroteios para ser dispensado por invalidez. O interessante do filme é como ele trata da influência da guerra na vida das pessoas, mostrando o preconceito sofrido pelo povo curdo que luta por sua independência do Iraque. É um drama que trata as pessoas de maneira bem realista e questiona como às vezes a razão da rivalidade está tão diluída no tempo que ninguém sequer lembra porque luta.
Sangre |
Na parte da tarde foi a vez de estrear a sala
Debussy, segunda em importância e tamanho no festival. É lá
que estão sendo exibidos os filmes da mostra Un Certain Regard.
O filme era Sangre do diretor mexicano Amat
Escalante, considerado por aqui um dos favoritos para receber o Camera
Dor (prêmio dado ao melhor diretor iniciante). Posso dizer que é
um filme realmente diferente, com um enredo que lembra os livros do escritor
cubano Pedro Juan Gutierrez. Personagens estranhos e enquadramentos
diferentes, contando um momento do cotidiano de um casal mexicano. O desconforto
das pessoas durante a exibição era notável - várias
sairam antes do filme terminar.
Na saída da sessão tive a oportunidade de conhecer grande parte
da equipe do brasileiro Cinema, Aspirina e Urubus.
Acabei indo com eles até a festa do filme Sangre, promovida
pela distribuidora Funny Ballons - que distribuirá tanto o filme mexicano
como o brasileiro no exterior. Final perfeito para um dia muito bom com direito
a comes e bebes na beira-mar de Cannes e um belo pôr-do-sol ao fundo.
Ah, o glamour da Riviera!
Dia 1 (11/05)
Quase 24 horas de viagem e passagens por Milão e Nice, incluindo um trecho feito num avião movido a hélice (isso mesmo, hélice! Nunca passei tanto medo na minha vida!), e chego finalmente a Cannes.
A cidade, de cara, impressiona. A famosa avenida Croisette é realmente um marco na cidade. De um lado, o Mediterrâneo, do outro, plameiras, lojas chiques e hotéis. Mas o foco hoje por aqui é mesmo o Palais du Festival, que durante os próximos dias será a Meca do cinema mundial. Pelo seu tapete vervelho passarão astros, diretores e empresários (é lá que acontecem as negociações dos filmes e as premiações).
A cidade está tão cheia de gente que parece carnaval de Olinda, tenho a impressão de que uma banda de frevo vai aparecer na esquina a qualquer momento. Incrível a movimentação que este festival de cinema gera. E já que comparei o local à Meca, todo amante do cinema deveria peregrinar pelo menos uma vez na vida pra cá - nem que fosse pra ficar vendo de longe.
Por ser a abertura, hoje a quantidade de filmes exibidos é extremamente reduzida. Além disso, cheguei em Cannes por volta das 14 horas, horário local, e já não há mais ingressos para as exibições. Mas o grande evento de hoje à noite é a festa de abertura (começou às 14h30 no Brasil e foi transmitida pela SKY). Infelizmente, ela é fechada para convidados e começo a suspeitar que portar uma credencial de imprensa não te coloca exatamente ao lado dos ricos e famosos... ;-)
Cidade baixa |
Os próximos dias prometem muitos bons filmes. Além dos aguardados hollywoodianos Star Wars: Episódio III - A vingança dos Sith e Sin City, teremos, no dia 15, Cidade Baixa e, no dia 16, O cinema, a aspirina e os urubus, ambas produções fabriqué au Brésil que foram selecionadas para a mostra paralela Un Certain Regard (um certo olhar). Já tive a oportunidade de assistir ao segundo e garanto que vai surpreender bastante a crítica brasileira. Vamos ver o que os críticos internacionais dirão!
Escrito por Paulo Caldas (O rap do pequeno príncipe...), co-escrito e dirigido por Marcelo Gomes, Cidade Baixa é um road-movie que narra a relação no ano de 1939 de um nordestino que deseja migrar para o Sul e de um alemão, fugido da Segunda Guerra, que vende aspirinas no sertão. Por sua vez, Cidade Baixa, escrito por Karim Ainouz (diretor de Madame Satã), co-escrito e dirigido por Sérgio Machado, conta a rotina de Deco e Naldinho a bordo do barco a motor Dany Boy, no qual fazem fretes e aplicam pequenos golpes. Quando conhecem Karina, os dois se interessam por ela. Entre ciúmes e reconciliações, essa vida a três se torna limítrofe. O filme conta com um elenco consagrado: Lázaro Ramos e Wagner Moura protagonizam o triângulo ao lado de Alice Braga.