Um banho de realidade e de afirmação da perseverança feminina abriu o 64º Festival de San Sebastián, na Espanha, nesta sexta (16), contemplando uma plateia GG (1.805 espectadores) com uma heroína de carne e osso: a pneumologista Irène Frachon, vivida pela dinamarquesa Sidse Babett Knudsen no thriller clínico 150 Milligrams (La Fille de Brest). De 2009 a 2011, ela colocou a própria profissão em risco ao desafiar a indústria farmacêutica da França ao denunciar os efeitos colaterais fatais de uma droga para tratar diabetes. A luta da médica ganha ritmo de suspense na narrativa dirigida pela francesa Emmanuelle Bercot, atriz e realizadora em cartaz atualmente no Brasil com Meu Rei. Elementos típicos dos dramas jurídicos hollywoodianos marcam a produção, escolhida como abre-alas de um dos mais prestigiados e antigos eventos competitivos do cinema mundial, fundado em 1953, em pleno regime franquista.
“Tive a oportunidade de conviver com Irène tempo suficiente para buscar uma heroína verdadeira, com dimensões verossímeis, contando também com o apoio de toda a família dela na hora de tomar certas liberdades”, diz Emmanuelle, renomada mundialmente como realizadora ao abrir o Festival de Cannes 2015 com De Cabeça Erguida. “O cinema se baseia em manter a tensão e, para isso, é necessário alimentar o conflito até com ambiguidades que não estavam entre os fatos reais”.
Parceira de cena de Tom Hanks no recente Negócio das Arábias e já confirmada no elenco da série Westworld da HBO, Knudsen é a força motriz de 150 Milligrams ao dar um realce de tintas cômicas para o temperamento obstinado – por vezes irascível – da Dr. Irène. No filme de Bercot, ela participa de cenas de exumação e de cirurgias que embrulharam estômagos pelo excesso de realismo – e de vísceras à mostra. “Existe uma obstinação que faz dessa médica um símbolo de heroísmo”, diz a atriz.
Formado por uma mistura de moradores da cidade (que pagam ingresso), profissionais da indústria e críticos do mundo todo, o público de San Sebastián migrou de 150 Milligrams diretamente para Orpheline, novo (e arrebatador) filme do também francês Arnaud Des Pallières, documentarista que se lançou na ficção em 2013 com o épico Michael Kohlhaas. Ele regressa ao universo fabular contando com a beldade Adéle Exarchopoulos (de O Azul é a Cor Mais Quente) numa trama sobre quatro figuras femininas que se completam, formando diferentes lados de uma mesma mulher.
Marcado este ano por homenagens a Sigourney Waver e Ethan Hawke, que virá esta noite à Espanha para a estreia de gala do western Sete Homens e um Destino, com Denzel Washington e Chris Pratt, San Sebastián vai projetar os ganhadores do Urso dourado de Berlim e da Palma de Ouro de Cannes: o documentário Fogo no Mar e o drama marxista I, Daniel Blake. Mas o pacote do festival é vasto, incluindo filmes inéditos de Denis Villeneuve (A Chegada), Oliver Stone (Snowden), Emir Kusturica (On The Milky Road), Bertrand Bonello (Nocturama), Paul Verhoeven (Elle), Ewan McGregor(estreando na direção com Pastoral Americana), Jeff Nichols (o cult Midnight Special) e Todd Solondz (Wiener-Dog). Tem duas brasileiras no cardápio do evento: Eliane Caffé, com Era o Hotel Cambridge (confirmado para concorrer na Première Brasil do Festival do Rio, de 6 a 16 de outubro), e Marília Rocha, que traz aqui o aclamado A Cidade Onde Envelheço, um destaque de do Festival de Roterdã.
Um dos títulos de maior expectativa de San Sebastián é a animação Your Name, de Makoto Shinkai, abrindo espaço para a discussão do desenho japonês contemporâneo nos mercados de exibição de todo o planeta. Haverá espaço para se animar ainda com Cegonhas e Festa da Salsicha, que passa neste domingo. O evento termina no dia 24, com a cerimônia de premiação e a projeção de L’Odyssée, drama sobre os feitos do documentarista e oceanógrafo Jacques-Yves Cousteau, estrelado por Lambert Wilson.
