Filmes

Artigo

A Bela e a Fera, Power Rangers e a representatividade LGBT no cinema

Ter personagens LGBT no cinema mainstream é só primeiro passo: falta ainda conseguir fazer isso direito

29.03.2017, às 13H25.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H44

Uma das discussões mais fervorosas sobre dois dos lançamentos mais grandiosos do cinema em março de 2017, A Bela e A Fera e Power Rangers, foi sobre a orientação sexual de alguns de seus personagens. A Disney comprou uma briga com a parcela mais conservadora dos fãs da marca ao afirmar que Lefou era gay e a Lionsgate resolveu explicitar que Trini, a Ranger Amarela, gostava de meninas. Ainda que a orientação sexual dos personagens não tenha feito a mais ínfima diferença para as respectivas tramas principais, houve reclamação por parte de quem se sentiu ofendido pela presença de LGBTs nos longas - principalmente em relação ao da Disney, boicotado em salas de cinemas sob a acusação de ter se tornado um “filme gay”.

Vamos falar sobre o porquê de A Bela e A Fera ser um filme gay? Vamos lá. Bill Condon, diretor do longa, é abertamente gay e tem um relacionamento de longa data com Jack Morrissey, um dos coprodutores do filme. No elenco, temos Ian McKellen, também homossexual, interpretando o relógio Horloge. Luke Evans, ator que dá vida ao vilão Gastão, também é gay. Se abrirmos o leque de profissionais técnicos envolvidos no filme, a lista de LGBTs vai quadruplicar. A Bela e A Fera não se torna gay por conta de um mísero personagem, mas por que a sociedade é uma teia composta por gays, bissexuais, lésbicas, héteros e até mesmo por quem não se identifique com nenhuma dessas nomenclaturas. Filmes são dramas, comédias, romances - não faz sentido essa separação em longa gay e longa hétero se eles podem ser fonte de entretenimento para todas as pessoas. Todo mundo tem (mesmo que não saiba) vizinhos, parentes, colegas de trabalhos que são LGBTs e, se um personagem secundário é capaz de incomodar alguém a ponto de impedir que essa pessoa vá ao cinema, ela não entende a pluralidade da sociedade na qual está inserida e não faz ideia das mãos por onde passam os produtos que consome.

Com o crescimento do movimento de reconhecimento LGBT, da luta por direitos civis e por voz, a indústria por trás dos grandes blockbusters foi naturalmente impactada pela urgência de introduzir personagens LGBTs nas tramas. Teria sido uma guinada ótima se, ao mesmo tempo, ela não tivesse continuado a manter um pé atrás por medo de desagradar o público médio, tão imerso na própria bolha social que ainda se assusta com a diversidade sendo retratada. Essa coisa de fazer, mas fazer excessivamente dosado, atrapalha que se trace um retrato fiel dessa parcela da população. O que muitas vezes resulta desse processo progressista-receoso são personagens gays que, de certo modo, ainda estão no armário.

Para ficar mais claro, vamos aos números. Em 2016, o relatório GLAAD dos 126 lançamentos dos principais estúdios mostrou que apenas 22 deles, ou 17,5%, incluíam personagens LGBTs. Citando os mais famosos estúdios, a Lionsgate tinha LGBTs em 33% dos seus longas, a Warner em 20%, Sony e Universal em 19%, Fox em 12%, e Paramount e Disney não retrataram o grupo em nenhum. No relatório, um dado interessante é que a Warner foi avaliada como “Falhando” enquanto a Fox ficou com “Adequando-se”, apesar de a primeira ter mais representatividade numérica. Isso porque não basta ter personagens LGBT: é preciso fazer isso direito.

O Lefou de A Bela e A Fera é um exemplo disso. A adaptação do clássico da Disney tem uns 15 personagens relevantes para a trama e criou-se uma enorme polêmica em relação a, em meio a todos os demais heterossexuais, um deles ser gay. Lefou não é uma escolha gratuita para carregar a cruz LGBT no filme: o personagem tem uma relação platônica com Gaston e isso faz parte da essência primária dele. Não é como se, do nada, um arco LGBT tivesse sido introduzido e alterado a história. Esse arco sempre esteve ali e o live-action deu a entender que dessa vez daria nome aos bois. Mas, na prática, não o fez. Lefou tem meia dúzia de trejeitos que mais servem como alívio cômico e uma cena "discreta e fora do meio no filme", quando o personagem aparece dançando com outro soldado.

Enquanto personagens heterossexuais em blockbusters demonstram interesse em parceiros, trocam carícias, se beijam e discutem problemáticas específicas da própria orientação, personagens LGBT como Lefou têm a manifestação da identidade sexual restrita a uma dança no canto da tela. Se todo o pudor que ainda é usado pelo cinema mainstream para censurar até onde pode ir a demonstração de afeto homossexual fosse aplicado a casais heterossexuais, A Bela e A Fera nem existiria.

Esses personagens LGBTs de blockbusters no geral tem toda a complexidade de suas orientações sexuais comprimidas em insinuações ou frases curtas explicativas. Alguns, aliás, nem conseguem fazer isso a tempo: em Harry Potter, J.K Rowling só avisou que Dumbledore era gay após o fim da história nos livros - o poderia ter sido resolvido nos filmes, mas não foi. O maior bruxo do universo mágico está inserido em uma trama de amor e destruição com Grindelwald e isso tudo fica escondido lá no fundo das entrelinhas durante a narrativa inteira. Alguém tem dúvidas de que se um deles fosse uma mulher o relacionamento romântico entre os dois teria sido escrito com todas as letras - como todos os outros romances heterossexuais da franquia? Deadpool é outro que está com o pé no segundo filme e talvez muita gente que viu o primeiro não faça ideia de que o personagem é pansexual. Apesar de Tim Miller, diretor do longa, ter declarado sempre que possível a orientação do herói, a trama toda foi sobre até que ponto um homem pode chegar para defender a mulher amada - nada diferente de infinitos filmes protagonizados por heterossexuais.

Introduzir um personagem gay só para falar que o longa tem um personagem gay soa como um artifício para atrair a comunidade LGBT para o cinema em função de prestigiar um filme aparentemente gay friendly. Mas não adianta inserir por inserir: a comunidade LGBT quer se ver na telona, mas também quer se reconhecer ali. O Lefou de A Bela e A Fera não é bom porque, ainda que simbolicamente demarque um território, não é representativo. Lefou pode ser entendido como um primeiro passo do mesmo modo que pode ser considerado uma migalha para quem queria ter visto Elsa de Frozen com uma namorada. Gays, lésbicas, bissexuais e transexuais da vida real manifestam atração por outras pessoas, têm conflitos, falam sobre seus amores e suas desilusões, se apaixonam, se desapaixonam. Nenhum LGBT vai se ver em um personagem que só o reflete durante uma dança curta em segundo plano.

A presença desses personagens nas tramas hoje é um avanço, mas um avanço que, paradoxalmente, ainda está atrasado em relação à realidade. Não basta dar ao personagem o direito de ter a sexualidade, é preciso tratá-la com a naturalidade que permita a ele exercê-la com a mesma plenitude dos personagens heterossexuais. Se a sociedade parte da premissa que todo personagem é hétero até que se prove o contrário - breaking news: Lefou é gay desde a animação de 1991 -, é óbvio que há uma grande importância em sinalizar que ele também pode não ser durante a narrativa, mas sem passar o resto do filme ignorando esse detalhe por ele ser sabidamente inconveniente para uma parcela dos espectadores.

E, obviamente, ter personagens LGBT na tela não pressupõe a necessidade de atividade afetiva ou sexual - isso quem vai dizer é o enredo. Em Power Rangers, a inserção de uma adolescente lésbica não teria motivos para comprometer o andamento da história e de fato não o faz. A passagem de Trini lidando com a própria sexualidade acontece com a naturalidade típica da idade, sem dar um destaque excessivo para o tema, sem tratar de forma sensacionalista, sem esquecer que o filme era sobre heróis salvando o planeta. A homossexualidade da Ranger Amarela não se sobrepõe à trama principal da mesma forma que a heterossexualidade do Ranger Azul também não o faz. A diferença é que se o filme abrisse espaço para focar no avanço de um relacionamento entre Jason e Kimberly ninguém se incomodaria tanto quanto se o mesmo acontecesse com Trini no lugar do rapaz.

Ao menos, o Lefou de A Bela e A Fera serviu para, de uma vez por todas, enterrar o argumento de que começar a explorar a diversidade em blockbusters pode afastar espectadores do cinema: o filme arrecadou US$ 170 milhões nos EUA em sua estreia e, somando aos US$ 350 milhões que abocanhou no resto do mundo, se tornou o musical live-action de maior sucesso da história do cinema (com uma bilheteria mundial de US$ 710 milhões até o momento). O radicalismo retrógrado só se esforça tanto em gritar o mais alto possível porque, a cada dia que passa, sua voz faz menos barulho - a isso damos o nome de progresso. Esses números não são pouca coisa para colocar no currículo do primeiro filme da Disney intitulado por extremistas como "filme gay". É algo com potencial para reacender a esperança de ver personagens LGBT sendo verdadeiramente bem construídos em blockbusters - e, é claro, de um dia poder ver Elsa com uma namorada.

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.