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A Saga Crepúsculo: Amanhecer - Parte 1 | Crítica

Bill Condon retrocede, reabilita tabus que havia derrubado em Kinsey e ajuda Stephenie Meyer a sacrificar a cisne Bella

17.10.2014, às 14H57.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H24

Gosto de pensar que eu estava me guardando para este quarto Crepúsculo, para Amanhecer, com todas as suas promessas de nonsense, como se o útero arrebentado de Bella Swan fosse abrir para mim as portas desse maravilhoso fenômeno fílmico-literário, mas o fato é que eu não vi os filmes anteriores da saga por mero desinteresse.

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Sempre houve curiosidade mórbida, claro, mas não era mais forte que a certeza de já ter adivinhado, mesmo sem ver os filmes, todas as obviedades da metáfora central da série, o vampirismo como alegoria da perda da virgindade. Pois eis que assisto a Amanhecer, e as constatações imediatas são duas:

1) Quando reconheço a autora da série, Stephenie Meyer, fazendo uma ponta no início do filme como convidada do casamento de Bella e Edward (o produtor Wyck Godfrey interpreta o padre), percebo que conheço Crepúsculo até demais. Não se menospreza o poder de osmose de um produto que ocupa 50% do total de salas de cinema do seu país;

2) O romantismo neoconservador da escritora é muito mais obsessivo do que eu poderia supor. Agora dá pra entender por que o Brasil tem a maior base de fãs da série fora dos EUA, num momento em que o país mais católico do mundo demonstra a extensão do seu reacionarismo... Mas voltemos ao assunto.

Não deixa de ser melancolicamente irônico que o diretor de Amanhecer seja o mesmo de Kinsey. Em seu melhor filme, Bill Condon retornava aos castiços anos 1940 para desmistificar a nossa sexualidade, na figura do "Doutor Sexo" Alfred Kinsey, e nessa comparação Amanhecer representa o absoluto retrocesso. Não é fácil ser mulher - pra saber disso não é preciso ser uma - mas ser uma mulher escrita por Stephenie Meyer é muito pior.

Principalmente porque Amanhecer, embora aparente resgatar figuras de uma certa tradição moral e religiosa (o homem forte e provedor, a mulher frágil mas fértil), na verdade está restabelecendo só os tabus associados a essas figuras.

Primeiro há a figura opressiva do macho. Edward não é "virgem" - oportunamente, o filme começa contando-nos que nos anos 1930 ele caçava mortais para se alimentar -, o que já estabelece entre ele e Bella uma hierarquia que não é somente a do imortal diante da mortal, mas também do homem experiente diante da menina casta de 18 anos. É óbvio que Bella transará, é por isso que ela e todos nós esperamos, mas Meyer e Condon trabalham essa expectativa de forma doentia. Daria pra fazer um ensaio só sobre a fixação por toras; um vampiro carrega uma tora, a casa de madeira na floresta é cercada por árvores grossas, a discussão dos lobos acontece no meio de um monte de toras...

Sendo uma mulher que cresceu na América profunda, é compreensível que as projeções fálicas de Stephenie Meyer envolvam muita lenha, muita rusticidade, mas não tem desserviço maior para as adolescentes do século 21 do que associar o sexo à imagem violenta da madeira ("wood", em inglês, é também uma gíria para ereção). Diante disso, os outros símbolos canhestros de masculinidade em Amanhecer (os vampiros assistem a futebol americano; os lobisomens, como são "exóticos", jogam soccer) são inofensiva piada.

Pela lógica, um macho só é macho ante mulheres fracas. As de Amanhecer são fracas não só por dependência (Bella é filha de uma figura de autoridade, um policial, então o vampiro no fundo é só uma autoridade que substitui essa anterior) como também fracas de espírito: elas dividem-se entre as servis (a vampira melhor amiga), as loucas (a vampira que não se controla) e as rejeitadas (a índia, a amiga do colégio). Bella não se encaixa em nenhum desses três perfis porque tem a "honra" de ser A Escolhida. A ela é reservado o privilégio maior do mundo de Stephenie Meyer: o sacrifício de ser mãe.

O sobrenome de Bella é Swan, "cisne", não por acaso. Os cisnes-brancos são monógamos por natureza, e na sua versão poética, eternizada nos balés, passam a vida emudecidos - até que cantam uma bela e triste canção antes de morrer. Não é preciso forçar na analogia para ver em Amanhecer um grande canto do cisne, em que a virginal Swan abre mão da própria vida no momento em que o mágico suco do vampiro a faz cantar. Outro tabu proscrito que o filme reabilita: a fertilização como fim da vida.

Amanhecer é um filme nocivo porque todas essas atribuições sociais obviamente datadas são tratadas como se fizessem, desde sempre, parte das leis da natureza. O próprio sobrenatural é reformatado para se enquadrar no mundo natural, científico - e a "sequência CSI" pelo interior do corpo de Bella é um exemplo disso. Deve ter gente que pira com essa espécie de teoria do Design Inteligente contada em forma de conto de fadas, mas eu não tive, francamente, muita paciência de pesquisar todos esses elementos dentro da mitologia da série. Como diabos um vampiro gera veneno, afinal?

Aliás, a título de curiosidade, acredito que seja importante dizer que a cena do parto não tem nada de especial: são efeitos de câmera demais e sangue de menos. A de Ligeiramente Grávidos é muito mais chocante. Ainda na linha confessional, gosto também de pensar que a transmutação a que Kristen Stewart é submetida neste filme tem muito de David Cronenberg - no sentido em que a deformação física espelha a deformação da identidade - mas se vou ofender algumas twilizetes (é assim que chama?) não preciso também xingar os fãs do canadense.

Só pra completar, uma ironia (já que Bill Condon nos brindou com aquela ironia do começo): o mais próximo de uma "mulher forte" que Amanhecer tem a oferecer é a lésbica Barbara Gruska, que canta na dupla Belle Brigade a canção que encerra o filme - o velho truque de colocar uma música animadinha durante os créditos finais, pra tudo mundo sair achando o filme o máximo.

Falando em final, Amanhecer tem um único mérito, que é o de contar uma história com um começo, um meio e um fim satisfatórios (muito mais do que qualquer Harry Potter, todos cheios de começos mal explicados e finais interrompidos). Não senti a necessidade de ver os filmes anteriores e sei que a guerra final com os Volturi é a maior enrolação. Em relação ao arco de Bella, a Parte 2 de Amanhecer é absolutamente dispensável, agora que ela já foi devidamente deflorada em nome dos dogmas e dos interesses de quem quer que seja.

Assim, encerro aqui este texto. Tive a minha primeira experiência com Crepúsculo e acredito que tenha sido também a última.

A Saga Crepúsculo: Amanhecer - Parte 1 | Cinemas e horários

Nota do Crítico
Ruim
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The Twilight Saga: Breaking Dawn - Part 1
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Ano: 2011

País: EUA

Classificação: 14 anos

Duração: 135 min

Direção: Bill Condon

Elenco: Kristen Stewart, Robert Pattinson, Taylor Lautner, Ashley Greene, Peter Facinelli, Elizabeth Reaser, Kellan Lutz, Anna Kendrick, Booboo Stewart, Julia Jones, Nikki Reed, Jackson Rathbone, Chaske Spencer, Maggie Grace, Billy Burke, Dakota Fanning, Sarah Clarke, MyAnna Buring, Tanaya Beatty

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