Ferrari medita sobre o tempo e o progresso sem desacelerar

Créditos da imagem: Neon/Divulgação

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Crítica

Ferrari medita sobre o tempo e o progresso sem desacelerar

Michael Mann usa o filme de automobilismo para devolver às narrativas filmadas a primazia do agir

Omelete
5 min de leitura
22.02.2024, às 18H50.

“A História é mais ou menos uma bobagem. Queremos viver no presente, e a única História digna de interesse é a história que fazemos hoje”, disse em 1916 ao Chicago Tribune o empresário Henry Ford, o dono da Ford e criador do sistema de linha de produção que acabou eternizando seu nome. A declaração sintetizava a sua filosofia e o cinema ajudou a consagrar, frequentemente numa chave distópica, o fordismo como o emblema maior do capitalismo.

Ford paira sobre o filme Ferrari como uma sombra onipotente. Em 1957, Enzo Ferrari (Adam Driver) se vê à beira da falência porque sua endividada escuderia não consegue converter a já estabelecida mítica dos seus automóveis em uma produção industrial sustentável. Vender a Ferrari para Ford é uma possibilidade. O futuro dos negócios vai depender de uma vitória na famosa corrida Mille Miglia, que Enzo trata ao longo do filme como o seu Santo Graal da vez. (A corrida se torna uma coisa efêmera na medida em que - no esporte e na linha de produção - cada vitória só leva à necessidade de novas vitórias.)

Essa é a opressão do tempo presente. Ela dita e impulsiona a ação no filme de Michael Mann, define o destino trágico dos seus personagens e faz da sua narrativa um exame pungente da História como assombração do presente. Ferrari se disfarça de filme de automobilismo para verificar - por meio de uma mise-en-scène desafetada e implacável que jamais torna seus personagens mais autoconscientes do que eles precisam ser - a máxima dramatúrgica de que é a ação que deve mover os temas e subtextos de um filme, e não o contrário.

Para além dos eventos reais envolvendo Enzo e a Mille Miglia, escolher a Itália para ser a ambientação do filme é fundamental para o sucesso do que Mann está articulando, porque talvez seja o país que mais ostensivamente faz do passado parte integral da sua paisagem. Ferrari revisita o imaginário que parece obrigatório na visão que Hollywood faz do país - a ópera, os monumentos, a igreja, a tendência ao barroco - para então remover-lhe a dimensão histórica na urgência dos dias. A cena da igreja, em que os homens ficam com a mão no cronômetro enquanto transcorre a missa, é uma rara licença poética num filme fiel aos códigos da austeridade; ela existe para agilizar a trama mas também para nos lembrar de que a opressão do presente ignora divisões do espaço. 

O passado e a História, porém, antes de ferirem Ferrari com os caprichos do destino, nunca deixam de marcar o filme com seus vestígios, em seus espaços de convívio, e é por isso que surgem aqui como assombração. Não é senão um fantasma encarnado a figura da esposa Laura Ferrari (Penélope Cruz), releitura da matriarca enlutada dos clássicos do cinema italiano. Michael Mann é um mestre do close-up e aqui ele coloca em prática, com efeito e precisão, seu consagrado enquadramento que destaca dois rostos, um mais à frente e outro ao fundo, para tornar Laura a assombração que lembrará para sempre, por sobre o ombro de Enzo, o custo perene de seus atos.

Enzo se torna uma grande figura trágica na medida em que não ignora a História. Ele apenas ritualiza a sua lembrança, quando o filme faz questão, por exemplo, de acompanhar seus passos em direção aos mausoléus verticais do cemitério que guarda os seus parentes falecidos. Nos momentos do cotidiano, cada gesto de Adam Driver adquire a gravidade do presente e cabe ao espectador contextualizar sua importância; o personagem pode ser capaz do maior cuidado para não acordar a família quando dá a partida no carro, mas o sentido completo desse pudor só será entendido em contexto - ou seja, em história - quando descobrirmos logo em seguida que não se trata da família “oficial”. 

Há um impecável exercício de narrativa nisso tudo, mas Michael Mann não o faz de forma distanciada como pode parecer. O fato de o roteiro minimizar os aspectos de “filme de esporte” não elimina o encanto do carro, da velocidade, todo esse feitiço do presente que fica latente na urgência com que o filme acelera adiante cheio de convicção. O século XX se definiu por essa lógica, enfim, de que o progresso não espera ninguém, e é sob ela que vivemos até hoje. Mann não poderia realizar Ferrari sem levar em consideração que a máquina tem fundamental valor afetivo e simbólico nesse impulso, então seu filme ignora todo o cinismo do que se fez em anos recentes sobre a fantasia fetichista do carro (rever Titane à luz de Ferrari só evidencia a literalidade atroz do vencedor de Cannes) e busca em Crash - Estranhos Prazeres (1996) seu correlato mais próximo para ilustrar nossas pulsões de gozo e destruição com a máquina. 

Sentimos pelo carro. As Ferraris que desfilam e se evisceram aqui não são uma extensão do corpo humano como em Crash, carro e corpo em simbiose de body horror - elas na verdade substituem por completo o corpo humano, que então se torna um desconfortável lembrete da nossa mortalidade, ou seja, um lembrete do tempo.

O ano de 2023 talvez seja lembrado no cinema americano como um interregno, um momento em que seus autores de prestígio se uniram em torno de um remorso. Em comum, favoritos e esnobados do Oscar como Assassinos da Lua das Flores, Ferrari, Garra de Ferro e Oppenheimer pesam o declínio do império, o capitalismo tardio e o ideário dos anos Trump em narrativas que examinam o rastro de sangue deixado na esteira fordista do progresso, da busca pelo sucesso, da predestinação americana. Ferrari é o melhor deles.

Nota do Crítico
Excelente!
Ferrari
Ferrari
Ferrari
Ferrari

Ano: 2023

País: Estados Unidos

Classificação: 16 anos

Duração: 130 min

Direção: Michael Mann

Roteiro: Troy Kennedy Martin

Elenco: Penélope Cruz, Shailene Woodley, Adam Driver

Onde assistir:
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