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O Desprezo | Crítica

<i>O desprezo</i>

03.04.2003, às 00H00.
Atualizada em 07.11.2016, ÀS 23H03

O desprezo
Le mépris, França/Itália, 1963

Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Alberto Moravia

Elenco:
Brigitte Bardot, Michel Piccoli, Jack Palance, Giorgia Moll, Fritz Lang

O nome é Jean-Luc. O sobrenome, Godard. Cineasta francês. Um dos pilares da Nouvelle Vague, escola rebelde que remodelou o cinema da França no final dos anos 50. Aos setenta e pouco de idade, em plena atividade artística. Se você o conhece apenas pela letra de "Eduardo e Monica", da Legião Urbana, está na hora, como diz o comercial, de rever os seus conceitos.

Principalmente porque O Desprezo (Le Mépris), filme de 1963, reestréia nos cinemas brasileiros. E porque, em tempos de Adaptação (Adaptation, de Spike Jonze,2002), vale a pena conferir uma versão bem menos cínica, muito mais poética, das entranhas da indústria cinematográfica.

Como todo grande mestre que se preze, Godard se debruçou sobre o tema e fez uma incontornável autocrítica. A sua visão do cinema, exposta em O Desprezo, mostra-se mais pessimista do que a de Federico Fellini (1920-1993) em 8 ½, do mesmo ano, e tão sarcástica quanto a de A Noite Americana (La Nuit Américaine, 1973), do seu parceiro de Nouvelle Vague, François Truffaut (1932-1984).

Aliás, Godard acabou injustamente incluído, ao passar dos anos, no vesgo e burocrático mito do “cinema francês é chato e pedante”. O Desprezo mostra não apenas que as obras do diretor são inteligíveis, mas também uma observação objetiva e bem humorada das coisas que o rodeiam.

O filme foca a trajetória de um roteirista, Paul Javal (Michel Piccoli), casado com uma ex-datilógrafa, Camille (Brigitte Bardot), e responsável por alguns scripts de sucesso. Tudo começa na Cinecittá italiana, a partir do momento em que Paul recebe o pedido do produtor Jerry Prokosch (Jack Palance, deliciosamente caricatural) para ajudar, em caráter de emergência, a reescrever o roteiro de um filme.

Um legítimo executivo de Hollywood, o norte-americano Jerry anda descontente com o uso que o diretor austríaco Fritz Lang (a lenda em pessoa, numa interpretação iluminada, de tom professoral, 1890-1976) faz de seu orçamento, na conversão às telas da Odisséia, de Homero. Lang defende que a epopéia grega deve obedecer ao texto original de três mil anos atrás, Jerry considera o resultado, estacionado no meio das filmagens, absolutamente imprestável.

Longe de ousar desrespeitar a obra do mestre Lang, Paul aceita o serviço por dinheiro, uma vez que o casal ainda paga as prestações de seu novo apartamento. O roteirista só não contava com os galanteios de Jerry para cima de Camille, o estopim do verdadeiro conflito da película.

O Desprezo funciona com uma analogia relativamente simples (não simplista), se comparada com as obras mais complexas da antologia de Godard. Mas isso não diminui o filme, pelo contrário, o torna mais acessível. Na epopeía grega, o herói Ulisses deixa a sua mulher, Penélope, para lutar na Guerra de Tróia. Com o passar de vinte anos, Ulisses é dado como morto, e Penélope passa a sofrer seguidas investidas de pretendentes, mas recusa-as, sem abandonar o amor por seu marido.

As conexões são claras: Paul atravessa os desafios de Ulisses, Camille é assediada como uma Penélope - e as filmagens são, literalmente, como uma batalha sem trégua e sem final.

A epopéia grega é o gênero em que a relação entre a limitação dos homens e a impiedade da natureza se mostra mais evidente. Godard imagina da mesma maneira o cinema financiado pelos norte-americanos. Não há meios termos, nem flexibilidade, diante de um modelo estritamente industrial. Assim, a figura do produtor é passível de duas interpretações: pode ser tanto o pretendente de Penélope quanto o deus Netuno, rei impedoso dos mares, obstáculo quase intransponível para Ulisses.

Se há algo em O Desprezo que não coincide com o gênero da epopéia e com os desfechos da Odisséia, é o seu final. Está mais para uma tragédia de Sófocles. Mas daí já seria revelar detalhes demais... Vale conferir, sem medo.

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