Todos Nós Desconhecidos troca a investigação do desejo pelo desabafo

Créditos da imagem: Searchlight/Divulgação

Filmes

Crítica

Todos Nós Desconhecidos troca a investigação do desejo pelo desabafo

Filme se refugia no interesse passivo pelo registro confessional

Omelete
4 min de leitura
06.03.2024, às 19H02.
Atualizada em 06.03.2024, ÀS 19H13

Todos Nós Desconhecidos usa os códigos do realismo mágico para contar a história de um roteirista que, enquanto escreve uma trama de teor autobiográfico e se envolve romanticamente com um vizinho, passa a visitar os pais mortos na casa da sua infância, como se os dois ainda estivessem vivos no presente. Mesmo que o espectador não saiba de antemão desse engenho, a cena em que o filme revela seu caráter fantástico já se impregna de expectativa e possibilidades.

Na cena em questão, depois de deixar Londres numa viagem rápida de trem, Adam (Andrew Scott) flana pela cidade de subúrbio onde cresceu. Ele deita no gramado de um parque, até que um homem atrai a sua atenção. Os dois caminham até uma loja de conveniência, onde parecem combinar silenciosamente um encontro; o homem compra as bebidas, oferece cigarro para Adam. Demora pouco para descobrirmos que o estranho, com seu bigode e uma jaqueta de couro que consumam certa fantasia gay, na verdade é o pai de Adam.

Não é preciso enveredar por interpretações freudianas para vislumbrar o potencial que esse suspense traz consigo. Há todo um senso de perigo e atração implícito na cena, e enquanto preserva esse suspense, para além dessa cena específica, Todos Nós Desconhecidos permanece uma narrativa imbuída do gosto pelo desconcerto e pela descoberta que marca o realismo mágico (ainda que seja um gênero que normaliza o desconcerto). Manter o controle sobre essas expectativas seria chave para o sucesso do filme, que infelizmente se desinteressa rápido demais por essa investigação narrativa.

Talvez seja um problema do próprio gênero. Não é por acaso que o realismo mágico prosperou na literatura latino-americana menos no romance do que nos contos; como o engenho se torna peça central e tende a se esgotar mais rápido quando o leitor compreende seu funcionamento, a narrativa mais curta se beneficia. De qualquer forma, quando adapta livremente o romance de Taichi Yamada (que já havia virado filme em 1988 com direção de Nobuhiko Obayashi, do cult de horror Hausu), Andrew Haigh está menos interessado nas possibilidades do cinema de gênero do que em fazer de Adam um alter-ego seu, canal para um relato testemunhal.

Hoje parece que a primazia do registro biográfico, confessional - apoiado numa suposta preferência do público pelo lado utilitário das histórias reais e das revelações de bastidores - toma cada vez mais o lugar da linguagem, como se a experiência vivida fosse um fim em si mesmo, seu valor absoluto e até anterior a qualquer encenação. Procuramos Todos Nós Desconhecidos pela oportunidade de ver Andrew Scott e Paul Mescal (que faz o papel do vizinho) interpretando um casal gay, mas também para entender até que ponto Adam espelha uma “verdade” exterior ao filme.

Haigh não se furta a atender essa expectativa específica; seu filme traz a inconfundível tendência ao sentimentalismo de quem tem muito a dizer sobre si, memórias presas na garganta. Como Adam, o diretor e roteirista se descobriu gay na infância em uma cidade de subúrbio inglesa antes de se tornar ficcionista, e é como se tudo na sua vida tivesse convergido para este momento, em Todos Nós Desconhecidos, que agora está se convertendo em uma enxurrada de acertos de contas. Seu filme perde o gosto pela descoberta na medida em que esses acertos convidam o espectador para ser mero ouvinte - no máximo, o convidam a se identificar com essas memórias, caso o espectador tenha vivências parecidas.

As investigações do real e do fantástico, quando tocam as pulsões e projeções do desejo e do risco, já foram melhor trabalhadas em outros filmes. Uma comparação parece conveniente neste caso porque Todos Nós Desconhecidos não precisava ser tão casto quando testa até onde pode chegar - inclusive em relação ao sexo. Um filme como Brown Bunny (2003), por exemplo, organiza todo o registro delirante da viagem (trata-se de um filme meio onírico de deslocamento, como nas viagens de trem de Adam) para que o sexo na cena final nos chegue absolutamente arrebatador em sua inegável “realidade”. Ok, pode se argumentar que é uma comparação injusta porque Brown Bunny se beneficia das facilidades do sexo hétero. Tomemos então o exemplo do cinema do português João Pedro Rodrigues; filmes como O Ornitólogo (2016) nunca deixam de estressar os limites da representação, do desejo e do olhar, para além do seu teor queer.

No caso de Todos Nós Desconhecidos, a escolha pelo realismo mágico parece atender, no fim, a uma conveniência muito pontual. Encenar a cena de sexo entre os dois homens no registro fantástico permite que o longa de Haigh seja aceito não como aquilo que o sexo de fato é, uma experiência de materialidade, e sim como uma licença poética do sonho, quase como um fugidio fluxo de consciência. Isso tira da encenação do sexo gay o caráter libertário que Todos Nós Desconhecidos eventualmente poderia reivindicar para si. Ainda que Paul Mescal e Andrew Scott façam o seu melhor para transmitir uma verdade nesse momento, é a vergonha que transpira, e o filme frustra a si mesmo caso tivesse, no seu desabafo falado, a intenção de superá-la.

Nota do Crítico
Regular
Todos Nós Desconhecidos
All of Us Strangers
Todos Nós Desconhecidos
All of Us Strangers

Ano: 2023

País: Reino Unido

Classificação: 16 anos

Duração: 105 min

Direção: Andrew Haigh

Roteiro: Andrew Haigh

Elenco: Andrew Scott, Paul Mescal

Onde assistir:
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