Filmes

Entrevista

82 Minutos | Documentário investiga o lado obscuro do Carnaval

Elogiado, produção explora como um desfile sai do papel

18.08.2016, às 17H15.
Atualizada em 05.11.2016, ÀS 14H03

Faltam quase sete meses para o carnaval mobilizar passarelas e blocos nas ruas de todo o país, mas, nas telas, a folia de Momo é protagonista de um documentário que vem arrebatando a crítica: 82 Minutos. Em cartaz a partir deste quinta-feira, o filme é dirigido pelo veterano crítico e realizador Nelson Hoineff (de Alô, Alô, Terezinha!) e acompanha os bastidores da festa das Escolas de Samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro, onde seis mil pessoas permanecem envolvidas, ao longo de um ano inteiro, na obra de construção de um desfile, a um custo estimado em US$ 5 milhões de dólares para uma só apresentação, com a duração exata de 82 minutos. É esse rito que o diretor esquadrinha no longa-metragem, escolhendo a Portela como objeto de pesquisa, enchendo a tela de azul e branco, sob a afiada fotografia de Pedro Kuster.

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Na entrevista a seguir, o documentarista, famoso por sua abordagem polemista, fala sobre os caminhos estéticos que escolheu e sobre o que encontrou por trás dos holofotes da Sapucaí.

Omelete: O que existe de essencialmente cinematográfico em um desfile de carnaval e o que você descobriu de mais inusitado nos bastidores da festa do carnaval durante a filmagem de 82 Minutos?

Nelson Hoineff: O essencial é entender o que é um desfile de Carnaval e como percebemos isso a partir do registro audiovisual. A televisão sonega por completo esse espetáculo do público. O desfile é para ela simplesmente uma forma de vender as atrizes e os atores que estão nas novelas. É isso e não se discute. Já não existe sequer a expectativa do espectador por uma transmissão que lhe envolva, que lhe informe, ou que lhe emocione. A informação resume-se aos dados biográficos das atrizes ou “celebridades” que estão presentes. Trata-se de um grande espetáculo coreográfico-musical, onde nem a coreografia nem a música são permitidas ao espectador. Eu já tinha percebido isso nos anos 1980, quando, por durante dois anos, os direitos de transmissão do Carnaval foram passados à TV Manchete e eu fui encarregado de coordenar as transmissões. Eu vi ali o que era feito antes e já achei espantoso naquela época. Tentei interferir o mínimo possível. Tivemos avanços com isso. Recentemente, no entanto, eu tentei assistir os desfiles e não consegui. Tudo era fragmentado e disperso. Ao espectador não era permitido mergulhar numa simples evolução da porta-bandeira, no som da bateria e, muito menos, na harmonia, cujo requisito prévio é o entendimento do conjunto – o que, pela definição dada pela televisão, é uma mera abstração. O que havia de essencial nesse desfile era violentado, roubado por completo do espectadorMas, há dois anos, eu me encantei pela natureza da construção de um desfile: nele, há seis mil pessoas trabalhando um ano inteiro, com milhões de dólares investidos, e tudo para uma única apresentação, de 82 minutos. Decidi fazer um filme sobre isso e, ao prepará-lo, tinha naturalmente uma escola no meu imaginário.

Omelete: O senhor chegou a pesquisar outras? 

Hoineff: Percorri quatro, antes de chegar à Portela. Esse universo encantador, repleto de tensões, conflitos e intrigas, é também o universo da beleza. E é uma beleza que, para a minha imensa surpresa, eu não tinha visto antes nas telas. Daí, para tomar a decisão de mergulhar nele foi um passo. É claro que me lembrei de uma referência cinematográfica como a do documentarista americano Frederick Wiseman, de filmes como Crazy Horse. Mas eu me lembrei também de tudo o que tenho feito em documentários, muito especialmente séries e programas de televisão como o Documento Especial, feito para a Manchete. Se há uma coisa que aprendi empiricamente é que não há possibilidade de se documentar algo de cima para baixo, de fora para dentro. Ou você está dentro ou não está em lugar algum. O imbecil arrogante que tem uma câmera na mão e um crachá de grande emissora no pescoço acha que é superior ao que estiver documentando... seja lá o que estiver documentando. Tem superpoderes, está acima de tudo. A verdade é justamente o inverso. A primeira preocupação para criar um filme, portanto, era poder imergir mesmo no universo abordado, ser parte dele, ver tudo horizontalmente. Acompanhando a Portela durante um ano inteiro, eu já torcia por ela, já era mestre da bateria, já era mestre-sala e carnavalesco. Então estamos nivelados e podemos fazer um filme.

Omelete: Sua obra de longa metragem vem sendo, essencialmente, uma contemplação de personagens que tiveram notoriedade popular no Brasil, como o apresentador Chacrinha, o jornalista Paulo Francis e o cantor Cauby Peixoto. Mas 82 Minutos quebra com esse linha. O que te levou a esse trânsito e o que esse movimento trouxe para o seu olhar cinematográfico?

Hoineff: Embora eu fale de personagens como Chacrinha, Francis, Santos-Dumont e Cauby, meu olhar não é biográfico. Deixo a biografia para outros. Acho que a maioria de meus filmes é sobre transgressão, a veia transgressora que se manifesta, de maneira bem diferente, nesses personagens todos. O universo da Escola de Samba é também profundamente transgressor. Não existe Escola de Samba bem comportada. Em 82 Minutos, quis que o espectador fosse descobrindo tudo comigo. Ao longo de 127 minutos de projeção, não existem depoimentos nem narração. Eu imergia em algo e queria levar comigo quem estivesse mais próximo. Acho que podemos falar em cumplicidade aí.

Omelete: Desde o fim dos anos 1990, vivemos um boom da estética documental no país. Você, que desde os anos 1960 se dedica a esse formato, ao Real, enxerga evoluções claras no documentário brasileiro de hoje? Quais? 

Hoineff: Há uns cinco ou seis anos, quando estávamos distribuindo o Alô, Alô, Terezinha!, eu proibí que se usasse a palavra “documentário” na divulgação. A razão para isso é que o termo “documentário” era em geral lido pelo espectador como alguma coisa chata e desinteressante. O público não tirava isso do nada; ele tinha suas razões. O documentário amadorístico, feito para o próprio umbigo, tornou-se um default. Reagir a isso dizendo que o espaço ideal para o documentário é a televisão também não é algo muito inteligente. Há uma boa produção documental na Grã-Bretanha, nos EUA, em Israel, em boa parte do Oriente, e também no Brasil. Mas temos que reconhecer que um documentário é diferente do outro. A vida do Cinema Novo foi abreviada porque não se reconhecia que, para cada Glauber Rocha, havia meia dúzia de realizadores mais fracos.  O espaço para o documentário é o cinema, desde que os exibidores (mais que os distribuidores) entendam isso e saibam separar as coisas. A revolução dos mecanismos de distribuição de sinais, que no Brasil começa em 1992, criou espaço para mais de 350 redes nos lineups de TV por assinatura, muitas delas voltadas para a exibição de documentários. Mas aí vem outra questão: esses produtos veiculador pelos Discovery Channels são mesmo documentários? A mistura operada entre os (raros) documentários investigativos e todos os outros gêneros de documentários tem sido contemplada? Para os tijolinhos de jornais é tudo a mesma coisa, assim como “nacional” é gênero de cinema. O documentário é um dos gêneros que mais crescem e se transformam no mundo. Se isso for melhor entendido nas instancias de comercialização, também o será pelo público.

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