Filmes

Entrevista

Cícero Dias, o Compadre de Picasso | "O documentário precisa encarar que está fadado à televisão e outras mídias", diz diretor

Vladimir Carvalho recebeu prêmios de roteiro e direção pelo projeto

04.11.2016, às 11H49.
Atualizada em 04.11.2016, ÀS 13H02

Sucesso de crítica por onde passou, tanto no É Tudo Verdade, como no Festival de Brasília, onde ganhou os prêmios de melhor roteiro e direção, Cícero Dias, o Compadre de Picasso entrou em cartaz demarcando toda a força autoral do diretor Vladimir Carvalho na genealogia artística do Brasil. Depois de passear pela Literatura em O Engenho de Zé Lins (2006) e pela música em Rock Brasília (2011), o cineasta paraibano – considerado o maior documentarista brasileiro em atividade – se volta para as artes plásticas para analisar a relação do pintor pernambucano Cícero Dias (1907-2003) com os maiores criadores da pintura moderna no mundo. Nesta entrevista, o octogenário realizador explica como fez sua viagem pela História.   

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Omelete: Existe uma vertente forte, no cinema brasileiro, de biografias, na ficção e no documentário. De que maneira Cícero Dias, o Compadre de Picasso vai além do formato padrão do biopic para discutir as artes plásticas no país?

Vladimir Carvalho: Na vaga da Semana de Arte Moderna de 1922, recebida com desconfiança e até vaias pelo reacionarismo acadêmico, dono de todos os paradigmas, Cícero Dias foi intrépido agente, quase heróico, na batalha de transformação que mobilizava não só as artes do país naquele momento. Ele pulou obstáculos quase intransponíveis, esgrimindo seu sonho de um certo anarquismo plástico. Ele é ao mesmo tempo uma página virada de enorme evolução e uma luz que pisca exemplarmente, assinalando uma permanente possibilidade de mudança. Ele foi um lírico pulsante de vida quando começou navegando no mar do figurativismo para terminar, décadas depois, em exitoso abstracionismo, incorporado à Escola de Paris. Para mim foi uma lição de vida desde que ouvi falar dele no rastro da chocante exposição de 1948, em Recife. Sua vida, tal como vemos no filme, está entrelaçada com os avanços das artes plásticas no mundo.

Omelete: Depois de anos de dedicação a este projeto, como ficou a sua relação com a obra pictórica de Cícero? Novas descobertas sobre a estética dele se fizeram acontecer?

Carvalho: Às vezes o que pretende ser uma biografia (como se isso fosse possível) traz uma carga de informações e quase sempre transborda do personagem e dá uma cabal ideia do seu contexto e de sua condição. Isso me mobiliza mais do que as profundezas do indivíduo. Parece arcaico hoje, mas me preocupa decifrar o que está embutido na relação entre classes — o que se define como um motor da história. No caso do Cícero, o que ele me traz é uma ideia da aparição do NOVO, do seu partejamento, aquele momento em que o que está latente, subjacente, é como que impedido de nascer. Gramsci usou o termo interregno, algo entre reinados; um rei está morto e o seu sucessor ainda não assumiu. Hoje, se sente no ar essa dolorosa transição entre o que não é mais e o que ainda não é mas será. Esse processo em geral não dispensa a chamada crise, em que, na aflição da mudança, muitos sintomas vêm à tona, como agitação, ódios e violência. Isto não é só uma atmosfera, é algo palpável em sua materialidade nada metafísica. Basta olhar em volta para perceber esses sinais ,como se estivéssemos às portas de uma aspirada transformação. A trajetória de Cícero Dias é amplamente ilustrativa do fenômeno.

Omelete: O senhor é encarado hoje como o maior documentarista brasileiro vivo, por conta das transgressões narrativas que perpetrou na linguagem da não-ficção com filmes como O País de São Saruê. Como o senhor avalia a atual situação do documentário hoje no Brasil?

Carvalho: Para mim essa seria uma situação absolutamente desconfortável. Esse personagem tem tanto de virtuoso quanto de sinistro. Depende de como é "consumido". Faço a minha parte por puro prazer de seguir trabalhando, desviando-me de emulações que só geram tensões e sofrimento. Já não chega o esforço de decifração da esfinge de todos os dias, que é a massa espessa de informações da avassaladora atualidade? Essa engrenagem do mundo requer cada vez mais reflexão e ação, assim mesmo, tudo junto e complicado. Mas é o que importa hoje. 

Omelete: Mas e quanto às inovações de linguagem do formato?

Carvalho: Há muito de mistificação por aí. Confunde-se desconstrução com empulhação. Experiências vãs se multiplicam e às vezes, esse "decifra-me ou te devoro" é pura ausência de conteúdo ou de talento. Faz décadas que sentam-se para adoração do James Joyce de Ulisses, por exemplo, que tem carradas de páginas por decifrar. Uma chatice. Busco desesperadamente a clareza, o diálogo, e isso requer, antes de mais nada, muita humildade. O País de São Saruê foi realizado faz justo meio século, quando não havia o gravador Nagra, ou era ainda uma raridade, e o digital dormia no saco do tempo, insuspeitado. A única novidade para mim foi que o fiz ignorando todos os requisitos técnicos, com filme vencido e uma ampliação precária para 35mm. Resultou em peça rara, difusa, fora de síncrone, dramático. José Carlos Avellar escreveu que eu movimentara o imóvel e a forma era tão forte que substituía o conteúdo. Penso que foi apenas a linguagem possível, mera circunstância de um cinema subdesenvolvido. O documentário tem que encarar o fato novo de que está hoje fadado à televisão e mídias outras e nichos outros, com todas as vantagens e desvantagens que isso representa. O espaço que parecia auspicioso, tornou a se fechar em copas e está à mercê dos filmes "grandes". Os tempos são outros e nós nos equivocamos quando pensamos que certos êxitos eram para toda a vida. O cinema envelheceu irremediavelmente.

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