Filmes

Entrevista

Dois Casamentos | "A Ancine é a continuação da ditadura", reclama o diretor Luiz Rosemberg Filho

Cineasta falou sobre as burocracias do audiovisual brasileiro e as influências da cultura pop no seu cinema experimental

30.06.2015, às 18H05.
Atualizada em 16.11.2016, ÀS 12H06

Duas mulheres em extremos opostos de uma sala, vestidas de noiva, discutem sobre a (agradável) hipótese de passar a noite com Megan Fox numa das sequências iniciais de Dois Casamentos, filme que chega às telas nesta quinta-feira. Ao debate sobre a beleza da morena de Transformers somam-se mais referências à cultura pipoca, seja numa menção aos sanduíches preferidos da Julia Roberts ou aos sorrisos de Rambo. Mal a estreia aconteceu e ele já se articula para filmar uma próxima ideia, sobre a Guerra do Paraguai, num formato fabular, capaz de evocar Tim Burton conforme ele detalha o argumento. Não por acaso, amigos e parceiros do realizador do longa-metragem, Luiz Rosemberg Filho – diretor de 72 anos, encarado pela crítica como uma lenda viva do chamado Cinema de Invenção, um termo relativo à experimentação narrativa como expressão de transgressão política – têm dito que ele virou pop.

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O adjetivo hoje é preciso para o cineasta, celebrizado no passado por exercícios de resistência à inércia criativa avessos a mercantilização como A$$untina das Amérikas (1975) e Jardim de Espumas (1970). De fato, há toda uma tradição do pop (de Hollywood à Broadway, passando pelas HQs) mastigado nas palavras de Jandira (Ana Abbott) e Carminha (Patrícia Niedermeier), protagonistas deste drama-experimento sobre a falência do matrimônio como instituição capaz de representar o amor. Mas a palavra “pop” cabe feito luva no fato de que, pela primeira vez, desde 1978, quando lançou Crônica de um Industrial (sua obra-prima, sapecada de elogios no Festival de Cannes e em diferentes latitudes da Europa), Rosemberg vai enfim voltar a ter um diálogo POPular, pois vai, finalmente, conseguir um espaço no circuito exibidor brasileiro. Em parte, a conquista se deve à acalorada recepção que seu ensaio poético sobre casórios teve em festivais nacionais. Na entrevista a seguir, Rosemberg faz uma avaliação sobre estar de volta às telas e sobre as distorções do audiovisual no país.

 À época das filmagens de Dois Casamentos, o senhor deu uma entrevista dizendo: “Filmes que pensam perdem lugar para os filmes dos bandidos, que não acrescentam nada à formação de nosso povo”. Mas parece que o senhor enfim furou o bloqueio. E como a sensação de voltar ao circuito após um hiato de 37 anos?
ROSEMBERG FILHO:
 Nesse período de ausência, eu não fiquei inativo. Dirigi 60 curtas, com muita coisa disponibilizada na internet. Deixei só de fazer longas, porque é muito chato babar ovo de burocrata. Eu tive muitos problemas com a Censura nos anos 1970. Levei muitos meses... quase dois anos... para poder lançar Crônica de um Industrial em função dos censores. Mas, hoje, vejo os filmes esbarrando numa outra Censura: aquela que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) impõe com a sua burocracia. A Ancine é a continuação da ditadura. 

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Frente à concorrência com toda a sorte de passatempos digitais audiovisuais que estão ao seu redor, o que levaria um espectador a se deslocar ao cinema para ver um filme com apenas duas atrizes, numa estrutura narrativa quase coreografada, como Dois Casamentos? Na Europa, olheiros de festivais que viram seu filme, responderam que se trata de uma aula de invenção como raras vezes se viu no cinema da América Latina, cujo atrativo maior é a exuberância visual de seus enquadramentos. O que o senhor argumenta?
ROSEMBERG FILHO: Eu nunca acreditei num cinema que faz imagem pela imagem. Antes da imagem, existe a palavra. Você pega um cineasta como o italiano Luchino Visconti, por exemplo, e vê num filme dele como O Leopardo que é da palavra que ele tira sua poesia. A palavra literária, transcendente. As telenovelas brasileiras são cheias de palavras. Mas elas, muitas vezes, não dizem nada. No cinema, elas dizem, ou, ao menos, podem dizer porque adquirem uma dimensão de representação. O meu novo filme pode interessar porque ele propõe representações sobre essa instituição hoje tão apodrecida chamada casamento. O meu novo filme se diferencia no esforço de fazer pensar. Ele quer fazer pensar sobre a repetição da mesmice na vida a dois. Eu não escolho meus temas: eles me escolhem. E, aqui, a ideia é entender o que pode ser dito por duas pessoas num mesmo espaço a partir da teatralização dos afetos.

A poesia de Dois Casamentos parece contida neste gesto, o de deixar bandeiras da política ou da linguagem de lado e se concentrar no amor, num ritual que parece mais uma coreografia e lembra, por exemplo, Persona (1966), do sueco Ingmar Bergman. De onde vem essa estética?
ROSEMBERG FILHO: Ela vem de uma perspectiva de desarquivar a retórica da vida a dois usando o cinema e o teatro para pensar o mundo frio e feio onde vivemos. Tento destruir a inércia do casamento por dentro do discurso. Para isso, eu adequei o meu movimento de câmera ao movimento das atrizes.

O senhor sempre fez da liberdade ideológica a sua bandeira. O senhor vê nos jovens diretores de hoje um ímpeto parecido? O senhor leva fé no novíssimo cinema da juventude brasileira?
ROSEMBERG FILHO: Enquanto houver juventude vai haver experimentação. Cada nova geração vai se reportar aos transgressores do passado e se sempre, como o poeta Ezra Pound e dramaturgos como Antonin Artaud e Bertolt Brecht. O problema é que os jovens são mal formados para o mundo dos afetos. Todos somos. Era importante que a educação sentimental passasse a fazer parte do currículo básico.

O senhor já desenvolve um projeto novo, sobre a Guerra do Paraguai. Como está essa produção?
ROSEMBERG FILHO: Estou já ensaiando com a ideia de criar uma estrutura de fábula capaz de discutir o imperialismo do Brasil na invasão do território paraguaio, também com o Uruguai. É um filme que criei em homenagem a três outros: Dr. Fantástico (1964), do Kubrick, Gaviões e Passarinhos (1966), do Pier Paolo Pasolini, e Tempo de Guerra(1963), de Jean-Luc Godard. São três discussões sobre o fascismo feitas como fábula, com poesia, com liberdade.

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