Filmes

Entrevista

Festival do Rio | "Um filme não pode ser uma questão de tempo industrial", diz Lav Diaz

Conhecido por produções longas, diretor teve filme exibido na repescagem do evento

19.10.2016, às 10H28.
Atualizada em 09.11.2016, ÀS 22H05

Com cerca de quatro horas de duração, centradas no calvário de uma jovem presa por um crime sob o qual tinha zero responsabilidade, A Mulher Que Se Foi (Ang Babaeng Humayo), produção laureada com o Leão de Ouro no Festival de Veneza no início de setembro, é quase um curta-metragem se comparado ao padrão narrativo de seu diretor, o filipino Lav Diaz, consagrado este ano com vitórias nos maiores eventos de cinema do planeta.

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Em fevereiro, ele foi contemplado com o Troféu Alfred Bauer, dado no Festival de Berlim a produções calcadas na pesquisa de linguagem e em muita experimentação, por Canção para um Doloroso Mistério, que contabiliza 482 minutos (oito horas!!!) em preto e branco (e terá projeção na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - que começa nesta quarta - no dia 23, às 14h, no Cinearte 2). Mas sua extensão impensável para padrões industriais não impede que seus títulos se tornem cults aclamados por um público fiel na Europa, como demonstram os rasgados elogios que colheu no fim de semana no Festival de Londres, contemplado por uma legião de espectadores.

De acordo com o site Awards Daily, um dos faróis da imprensa quando o assunto é a carreira de longas em festivais, a acolhida do diretor em Londres foi ainda mais forte que a de Berlim e de Veneza, descrevendo seu cinema como “uma experiência embriagadora”. Para Lav, o Tempo é um Deus a ser reverenciado e não uma questão de mercado, a ser delimitado por uma grade de programação de cinema. É uma questão de liberdade, como ele atesta nesta entrevista ao Omelete, a reboque do sucesso que seu último filme (o laureado em solo veneziano) fez em sua exibição no recém-encerrado Festival do Rio. O evento, que está em repescagem até quarta, projetou A Mulher Que Se Foi nesta terça, às 19h, no Reserva Cultural Niterói, em sessão única.

O cinema é, para mim, um exercício de psiquiatria, no qual o ritual de se assistir a um filme coletivamente, numa sala escura, descarrega nossas neuroses. Por isso, um filme não pode ser uma questão de tempo industrial. Filmes são uma apreensão do Tempo mítico, uma apreensão da vida. Viver é filme, é cinema”, diz Lav. “Eu amo cinema comercial, aquele que tem um tempo de fluidez demarcado, com viradas de roteiro, com jornadas de superação. Mas eu sou um filipino. Eu falo de um país que necessita se ritualizar para entender suas feridas históricas e precisa estender esse seu ritual, sua jira, aos demais povos, para que eles possam entender quem somos e o que sentimos. Isso exige liberdade. Exige paciência. Exige imersão”.

Por mais longos que sejam os filmes de Lav, conhecido antes aqui por produções como Norte, o Fim da História (2013), de 250 minutos, eles são imunes a bocejos e cansaços. Capazes de transitar pelas margens da fantasia e do neorrealismo, a partir de uma reflexão sobre o processo de emancipação política das Filipinas, após o jugo espanhol em sua colonização, os longas do cineasta desafiam as dimensões sensoriais do audiovisual com personagens caídos na invisibilidade que buscam ser vistos. 

Eu também tenho meus super-heróis, só que eles são cineastas que me ensinaram a encarar o tempo poeticamente, como o húngaro Béla Tarr e o russo Andrei Tarkóvskycom quem aprendi que o cinema pode renovar minha fé no mundo”, diz Lav, que teve a fábula Do Que Vem Antes (premiada no Festival de Locarno em 2014, com suas cinco horas de duração), lançada no Brasil no primeiro semestre. “Não existe cinema lento: existe cinema, ponto. A lentidão é da vida.”  

Fã de histórias em quadrinhos, o diretor de 57 anos flerta com a literatura de Leon Tolstói (1828-1910) na construção de A Mulher Que Se Foi. Na trama, Horacia (Charo Santos-Concio) pena toda a sorte de humilhações na cadeia em decorrência da traição que sofreu de seu amante. Saída do cárcere, ela vai dar o troco e aprender os abismos entre riqueza e pobreza. Horacia trama minuciosamente a sua teia de aranha para matar Rodrigo, um homem rico responsável por sua detenção. No entanto, vários personagens vão surgindo em seu caminho, e ela, bondosa, vai trocando a vingança pela caridade. 

A economia engavetou o mundo e as relações sociais em um cofre que eu tento arrombar pela metafísica”, diz o diretor, que terá mais uma projeção para seu Canção para um Doloroso Mistério na Mostra de São Paulo no dia 25, às 15h, no Espaço Itaú Frei Caneca. “Filmar é resistir”. 

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