Filmes

Entrevista

Joaquim | "Espero que seja como um espelho, mesmo que desconfortável, do nosso caráter", diz Tiradentes do cinema

Julio Machado encarna o mártir em filme que chega ao Brasil esta semana

17.04.2017, às 23H29.
Atualizada em 18.04.2017, ÀS 00H01

Escalado papa o papel do bookmaker Marcos em Os Dias Eram Assim, a nova novela das 23h da Rede Globo, lançada nesta segunda (17), o paulista Julio Machado arrancou elogios Europa adentro ao encarnar a luta centenária do Brasil contra a corrupção nas cenas de ação e conspiração de Joaquim, espécie de épico político sobre Tiradentes, que estreia nesta quinta (20). O filme chega precedido de resenhas apaixonadas, recebidas em sua passagem em concurso pelo Urso de Ouro do Festival de Berlim, em fevereiro, ocasião em que seu astro virou o centro das atenções da crítica internacional.  

Tentei me voltar não para o herói, mas sim para o homem, considerando que, se Tiradentes é tido hoje por herói, isto se deve muito mais à possibilidade que o homem Joaquim encontrou de realizar feitos heróicos, do que propriamente a uma vocação divina para o heroísmo, ou o que o valha”, explica Machado, nascido em Jundiaí (SP), há 37 anos, e projetado para o estrelado pelos palcos, em seu desempenho na peça Incêndios, em 2013.

Definido em Berlim como um “episódio de Game of Thrones nas Minas Gerais do século XVIII”, Joaquim foi concebido como uma coprodução com Portugal, dirigida pelo pernambucano Marcelo Gomes (de Cinema, Aspirinas e Urubus). Recheada de fugas, perseguições e conflitos, sua trama apresenta a gênese do mito político de Tiradentes, narrando as peripécias do mártir da Inconfidência antes de seu engajamento no movimento, com foco em sua paixão desvairada por uma escrava (Isabél Zuaa). 

Todo o recorte proposto pelo Marcelo foi sempre na direção do homem Joaquim. Então, ao tecer uma rede de afetos que me uniam a este homem imaginado, eu fui encontrando conexões com as minhas verdades e metáforas. Chamo por rede de afetos aqueles aspectos mais humanos e subjetivos que me uniriam a ele: o sentimento de esperança numa vida melhor, num país melhor, mais justo, mais igualitário, etc. Até mesmo no terreno das minhas próprias ambições pessoais em choque com a dinâmica da falsa meritocracia em que vivemos”, explica Machado. “Não foi difícil o cidadão Julio, vivo em 2017, encontrar em si o sentimento de inconformismo e revolta diante de motivos semelhantes aos que Joaquim teria hipoteticamente encontrado, mesmo tendo vivido há mais de trezentos anos. Não acho que muita coisa tenha mudado no Brasil, sinceramente. Então considero esta ‘crônica do cotidiano’ do período colonial que se pretende ser o Joaquim, uma possibilidade de leitura de gênese da formação de nossa sociedade, portanto carregada de uma forte carga de ancestralidade”.

Segundo Gomes, a imponência física de Machado, a quem ele conheceu no teatro, abriu a deixa para sua escolha como jovem Tiradentes. “Nos testes, fiquei encantado com a rapidez com que ele respondia os meus pedidos de mudanças nos caminhos da cena em que estava sendo testado. Julio é um ator de uma sensibilidade muito aguçada. Durante os testes, ele era capaz reagir rapidamente ao que era pedido. Depois já durante o processo de construção do personagem, ele virou um grande parceiro somando dedicação e inventividade para a construção das situações dramáticas”, diz o diretor.

Aclamado por sua participação na novela Velho Chico, como capataz do Saruê (Rodrigo Santoro), Machado tem mais dois filmes para estrear este ano: A Sombra do Pai, um longa de Gabriela Amaral Almeida (cujo roteiro é fruto de uma bolsa conquistada em Sundance) e A Costureira e o Cangaceiro, de Breno Silveira. A estreia de Joaquim é uma vitrine para seus talentos, torneados a partir de uma árdua preparação física.

A abordagem física foi de longe a mais determinante neste trabalho. No campo teórico, interessou a nós o estudo dos costumes da época: como se vestiam, como se alimentavam, como moravam, como se deslocavam aquelas pessoas. Mas foi fisicamente que me deixei afetar mais profundamente por aquele universo de Tiradentes”, diz Machado. “Houve uma profunda pesquisa de repertório físico voltada para ele: como se comporta o corpo de quem se embrenha numa natureza tão hostil como a do Cerrado, por exemplo. Que tipo de motivação física te leva a garimpar o dia todo, debaixo de sol, sem se lembrar sequer de comer, de se alimentar. Foi através do encontro com garimpeiros locais de Diamantina que pude ir me aproximando deste entendimento. Também a prática da cavalgada, a relação com os animais, o banho de cachoeira: tudo isso foi me reconectando a um material muito íntimo meu, já que cresci no interior de SP, e participei muitas vezes de atividades semelhantesEntre os filmede pesquisa, Aguirre – A Cólera dos Deuses, de Werner Herzog, e Iracema – Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, foram referências pontuais para o processo, não só do elenco, como de toda a equipe envolvida.   

Segundo o ator, a abordagem adotada por Gomes permite que o espectador de Joaquim tenha uma visão em retrospectiva das mazelas nacionais.

Penso que a crueza do retrato levantado nos possibilita ver os eventos de forma arquetípica. O que se esperar de uma sociedade que foi inventada sob o jugo da exploração desmedida, da crueldade desumana que é a escravidão, por exemplo? Parece-me que, apesar da independência conquistada, paira sobre o Brasil, quase como um destino trágico (no sentido grego deste conceito: o destino do qual você não pode se desviar), a sina de ser explorado pelas camadas detentoras dos poderes”, diz o ator. “Espero que Joaquim funcione como um espelho, mesmo que desconfortável, de nosso caráter. E que contribua para a reflexão de que certos hábitos políticos contemporâneos não deveriam ser atribuídos a este ou aquele grupo, são na realidade hábitos introjetados desde a mais remota paisagem em nosso DNA”.  

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