Filme brasileiro mais esperado do ano, O Grande Circo Místico enfim tem data para estrear: 7 de setembro. Sua primeira cópia fica pronta em maio, para a avaliação de seu realizador, o cineasta alagoano radicado no Rio de Janeiro Carlos “Cacá” Diegues, que estuda já a hipótese de brigar por uma vaga no Festival de Veneza com o longa-metragem. Com um elenco estelar para os padrões nacionais (Atonio Fagundes, Bruna Linzmeyer e Juliano Cazarré estão nele), tendo o astro francês Vincent Cassel como o patriarca de um picadeiro, esta coprodução entre Brasil, França e Portugal nasce de um diálogo entre o diretor de sucessos como Deus é Brasileiro (2003) e a poesia de Jorge de Lima (1893-1953). Sua trama narra as peripécias de uma trupe circense ao longo de cem anos. Jesuíta Barborsa é o mestre de cerimônias deste circo.
Na entrevista a seguir, Diegues – que lança este ano pela editora Cobogó uma coletânea de suas crônicas de jornal – fala, com exclusividade ao Omelete, sobre o projeto, sobre cultura de periferia e sobre o cenário político do Brasil de hoje, com a autoridade de quem foi um dos pilares do Cinema Novo, mais importante movimento audiovisual do país nas telas.
Omelete: Que sentimentos te conduziram ao Grande Circo Místico e que imagens você extraiu de lá? Que filme veremos?
Carlos Diegues: Sempre fui louco por Jorge de Lima que, graças a meu pai, eu li desde a mais tenra adolescência. Uma vez, prometi a (o também diretor) Glauber Rocha que faria a Invenção de Orfeu (escrito por Lima) no cinema. Depois de uma profunda crise em 2006, após lançar O Maior Amor do Mundo, decidi enfrentar esse velho desafio. Cheguei a O Grande Circo Místico, um poema que sempre soube de cor. Claro que a musica de Edu Lobo e Chico Buarque para o balé de Naum Alves de Souza me ajudou a decidir por esse projeto que preparo desde 2007, ano da primeira versão do seu roteiro. O que veremos é o resultado de todo esse longo processo de uma vida, que acabou por se tornar o suspiro de um momento em que o cinema, mais do que nunca, é o principal e mais importante elemento nela.
Omelete: Que trajeto Jorge de Lima fez junto com você ao longo das décadas da relação de leitura fiel que você mantém com os versos dele?
Carlos Diegues: Não tenho dúvida de que Jorge de Lima é um dos três maiores poetas da língua portuguesa de todos os tempos. Essa convicção quem me deu foi o poeta e crítico Mário Faustino, nos meus 18 anos, quando eu já conhecia de cor alguns dos poemas de Jorge. Para quem não sabe, Faustino foi o maior guru literário de minha geração, tendo morrido aos 32 anos de idade. Nunca deixei de ler Jorge de Lima e, ao longo de meus filmes, vira e mexe, sua obra aparece secretamente num deles, numa situação, num pedaço de diálogo ou simplesmente na inspiração de fazer arte.
Omelete: Como funcionou a experiência da coprodução com Portugal e França nesse projeto? Como é a tua história com coproduções internacionais?
Carlos Diegues: Fiz muitos filmes em coprodução, ao longo de minha vida de cineasta, a maioria das vezes com a França, que sempre curtiu o cinema novo brasileiro. O problema da coprodução é encontrar circunstâncias equivalentes que permitam a boa relação entre cinemas de tão diferentes países. Como o Brasil é sempre um país em movimento (para frente ou para trás), nem sempre as circunstâncias são muito favoráveis, nem sempre coincidem os rumos das duas cinematografias naquele momento e, sobretudo, o patamar das economias dos países associados. Dessa vez deu certo, apesar de imensas dificuldades específicas do projeto.
Omelete: Que cenário audiovisual espera Grande Circo Místico nas telas? Que cinema o Brasil tem hoje? Que cinema o Brasil faz hoje?
Carlos Diegues: O cinema brasileiro esta ganhando uma personalidade nova em que o destaque é a sua diversidade geracional, regional, política, cinematográfica. Não existe mais um cinema brasileiro, mas uma cinematografia nacional com várias diferentes tendências. E isso é bom. Mas é preciso reconhecer que essa diversidade não tem sido muito bem atendida pelos meios de produção e difusão. Nem todos os filmes têm tido o mesmo tratamento. É preciso corrigir certas discrepâncias, mas acho que estamos todos formando bem a consciência disso.
Omelete: Como você avalia a atual situação política do Brasil, diante do contexto de impeachment e de Temer no Poder?
Carlos Diegues: Devo confessar que estou de saco cheio da irracionalidade dessa polarização burra que envolveu definitivamente a política brasileira, vítima da intolerância e da dificuldade em reconhecer o direito à diferença. Por mim, fora todos.
Omelete: O sonho democrático da sua geração, nos anos 1960, difere quanto da ideia de democracia que encontramos hoje no Brasil?
Carlos Diegues: Nosso sonho não era apenas o da democracia, o principio de tudo. Nós sonhávamos, sobretudo, com uma nova civilização humana em que o Brasil, seus costumes e cultura fossem a principal referência. Nós não queríamos apenas mudar o Brasil, a gente queria mudar o mundo. Hoje, acho que vivemos dentro de um regime democrático funcional, como qualquer outro. Funcional e medíocre.
Omelete: No fim dos anos 2000, você encampou uma luta em prol dos diretores de periferia, produzindo filmes seminais como 5xFavela, Agora Por Nós Mesmos, que te levou a Cannes em 2010. Como essa cena audiovisual da periferia se encontra hoje?
Carlos Diegues: 5XFavela, Agora Por Nós Mesmos foi um dos mais belos e emocionantes projetos de minha vida, do qual me orgulho muito até hoje e acho que me orgulharei para sempre. Mas não se tratava de um projeto de experiência antropológica, como a de por uma câmera nas mãos de índios que nunca a viram antes. Queríamos revelar a existência daqueles cineastas desconhecidos, vindos de classes com dificuldades materiais em se manifestar no audiovisual, e de um cinema que só eles sabiam e podiam fazer. Agora é com eles.
Omelete: Entre muitos lugares comuns e muitas formas de exclusão, o que a expressão “periferia” simboliza hoje para a cultura nacional?
Carlos Diegues: Estamos vivendo hoje, no Brasil, uma espécie de fascismo de esquerda que, pensando contrapor-se ao fascismo de direita, importa certos conceitos universitários que são apenas a reprodução do que é dito hoje nas universidades consideradas mais avançadas dos Estados Unidos, um país tão diferente do nosso. Há uma espécie de colonialismo liberal de esquerda que inventa certas fantasias, como a da negação da mestiçagem e seu valor, uma negação hoje na moda na cena acadêmica. A periferia é uma delas. No estágio em que se encontra a crise brasileira, periférico é todo o país. Precisamos voltar a pensar um pouco mais na volta do conceito de classe e suas consequências.
Omelete: Que últimos filmes estrangeiros mais te impressionaram nos últimos anos? Que diretores estrangeiros de hoje mais instigam você? Filmes de super-herói, a febre da hora, instigam você?
Carlos Diegues: O audiovisual está vivendo hoje uma transformação radical de seus meios de produção e difusão, não dá mais para pensar o cinema como o pensávamos nos anos inocentes e cinéfilos do século XX. Hoje, filma-se em todo lugar do mundo, todo tipo de filme, independente de quem vai vê-los. Sobretudo porque hoje é possível ver esses produtos audiovisuais de vários modos, das salas de exibição à internet, passando por todas as formas de difusão em TV, VOD, OTT e todas essas siglas contemporâneas às vezes indecifráveis. Em vez de reclamar de gêneros e selecionar diretores preferidos, está na hora de tentar inventar o que ainda não existe para ver o que vai dar. E seja o que Deus quiser.
Omelete: Passando em revista a sua obra, é claro pra você a linha autoral do seu cinema? Que tema mais norteou tua obra de Ganga Zumba (1964) até hoje?
Carlos Diegues: Sempre quis e tentei ser um cineasta de meu tempo, fazendo aquilo que podia interessar a mim e aos outros no momento em que filmo. Não tenho nenhuma nostalgia do passado, nem desejo enviar mensagens ao futuro. Sou um cineasta do presente.