Filmes

Entrevista

"O maior desafio de dirigir Ney Latorraca foi libertá-lo da comédia", diz diretor de Introdução à Música do Sangue

Conhecido por miltância LGBT, Luiz Carlos Lacerda fala sobre trabalho com ator

27.06.2017, às 14H00.

Ambientado numa cidadezinha do interior mineiro onde a luz é um luxo e o desejo é uma maldição, Introdução à Música do Sangue, do diretor carioca Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, estreia nesta quinta-feira (29) trazendo o mais longo (e ousado) trabalho do ator Ney Latorraca, o eterno Barbosa da TV Pirata, nas telas em anos. Realizador de filmes aclamados como Leila Diniz (1987) e For All – O Trampolim da Vitória (1997), o cineasta – famoso por sua militância LGBT – tirou esta produção orçada em R$ 770 mil de um argumento herdado de um de seis maiores mitos (e amores de juventude): Lúcio Cardoso (1912-1968), escritor de obras-primas como A Crônica da Casa Assassinada

No filme, o casal Ernestina (Bete Mendes) e Uriel (Latorraca) vive imerso em trevas em uma estância onde ele planta e ela costura. Lá, eles cuidam de uma adolescente com os hormônios em erupção (Greta Antoine). Em dado momento, diante da chegada de um vaqueiro (Armando Babaioff), as carências afetivas e físicas da moça explodem. Será difícil reter toda a paixão que respinga por entre segredos, mágoas, desatenções e abusos acumulados por anos a fio.

Na entrevista a seguir, Lacerda detalha suas escolhas estéticas:

Omelete: O roteiro de Introdução à Música do Sangue tem como base um enredo deixado por um dos maiores escritores brasileiros, dono de uma prosa chamada até de “maldita” por seu teor predatório em relação à moral burguesa: Lúcio Cardoso. Como este argumento chegou a você?

Luiz Carlos LacerdaO Lúcio me deu esse argumento, inacabado, em 1968, quando eu fiz o meu primeiro curta-metragem como diretor, O Enfeitiçado. Só que eu perdi esse material e só o reencontrei em 2012, no acervo do Museu da Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa, pesquisando para o doc que fiz sobre A Mulher de Longeum projeto de longa que ele começou a dirigir no fim dos anos 1940, produzido por meu pai, João Tinoco de Freitas, um ferrenho defensor dos ideias comunistas, vindo de Portugal.

Omelete: O que Lúcio Cardoso representou para a ficção brasileira?

LacerdaLucio surgiu na literatura num momento em que o must era o romance social (representado por Jorge Amado, Graciliano, Zé Lins do Rêgo, Raquel de Queiroz), depois da Revolucão de 30. Mergulhado na alma humana, sua obra significou um corte radical, na contramão desses romances, influenciados pelo realismo socialista.Alguns até encomendados pelo Partido Comunista. E junto com Otavio de Faria, Cornélio Pena e mais tarde Clarice Lispector, seus livros inauguraram o que se convencionou chamar de romance de introspecção psicológica brasileiro. Católico, homossexual e poeta, Lucio foi uma referência que faltava pra essa geração que não acreditava que somente o social era a argamassa que tecia a alma dos homens. Apesar de ainda não ser muito conhecido no Brasil, seus livros têm edições na França, Espanha e recentemente A Crônica da Casa Assassinada recebeu nos Estados Unidos o prêmio de melhor tradução de 2016. 

Omelete: Qual é o lugar do Desejo no seu cinema?

LacerdaO desejo é a mola que impulsiona a vida. A libido, manifestada sob várias formas, é a essência da obra de Arte e do processo criativo de todo artista.Clarice tem um conto, que já foi tema de um lindo curta, em que uma mulher de 80 anos vai consultar um médico preocupada com o seu desejo. E a primeira pergunta que faz é: “Isso passa, doutor?”  

Omelete: Qual foi o maior desafio de dirigir um ator do naipe de Ney Latorraca, que, à época das filmagens, acabava de sair de um problema de saúde grave?

Lacerda: Meu principal desafio neste filme foi libertar o ator que estava aprisionado dentro de uma camisa de força que o sucesso do comediante aprisionou. Ney ficou muitos anos restrito a praticamente um personagem de comédia, com poucas incursões fora disso. Já tínhamos trabalhado juntos em For All e Viva Sapato!, duas comédias que dirigi. Muitas pessoas que leram o roteiro de Introdução..., quando eu dizia que ele era o ator escolhido para o personagem obsessivo e introspectivo do Uriel, diziam que eu estava louco, que não ia conseguir isso. Ao contrário de me amedrontar, só estimulava a ideia de encarar, junto com ele, esse desafio. Nas filmagens, quando ele deixava se resvalar para fora da linha do personagem (e ele tem uma animação muito forte, sedimentada, um gesto, uma entonação, levariam tudo a perder) eu dizia no seu ouvido "O Ney está aí! Canta pra subir..." E ele fazia um sinal com a cabeça, compreendendo, e retomando a atmosfera angustiada que é a marca dos personagens de Luúio Cardoso.Fiquei muito feliz com o resultado. Só não sei se ele compreendeu a importância dessa volta por cima. Ou se prefere voltar à comodidade do piloto automático. Brilhante, mas repetitivo.

Omelete: Desde sua estreia como diretor, em 1971, com Mãos Vazias, apoiado no carisma de Leila Diniz, você ficou conhecido por seu requinte na construção de figuras femininas completas. Quem são as mulheres de sua Introdução à Música do Sangue?

Lacerda: Ter no elenco uma atriz com o carisma e a experiência da Bete Mendes foi um presente dos deuses. Trabalhei com outras grandes atrizes nos meus filmes, Leila Diniz, Odete Lara, Louise Cardoso, Betty Faria. Gosto desses verdadeiros patrimônios do cinema brasileiro. A sensibilidade feminina e sua alma são matérias com as quais trabalho com maior profundidade. Seus mistérios são um labirinto prazeroso de investigar. Aqui eu tive Greta Antoine, essa grande e tão jovem atriz. Esta com ela foi um milagre que aconteceu nos últimos dias que antecederam as filmagens, apresentada pelo amigo Delvo Simões. Visceralidade e beleza são suas marcas. A esse elenco devo um dos pilares do filme, assim como é um pilar a fotografia de Alisson Prodlik e a direção de arte de Oswaldo Lioi combinada com os figurinos de Angélica Braz.

Omelete: De onde vem a história de um cineasta tão urbano quanto o senhor com o universo rural de Minas Gerais, retratado em Introdução à Música do Sangue?

Lacerda: Minha relação com a cultura das Gerais começa pela literatura. Na adolescência, meu professor, o poeta Claudio Murilo Leal, apresentou-me a poesia de Drummond, Murilo Mendes, Alfonsus de Guimarães Filho e o poema da carioca Cecilia Meireles,  O Romanceiro da Inconfidência, que fez a ponte com os poetas inconfidentes. Parte dessa relação veio a partir de meu pai, um português: João Tinoco de Freitas, produtor de Almas Adversas, filme de 1948, feito de um argumento de Lucio Cardoso, dirigido por Leo Marten. Papai produziu ainda o filme inacabado que o romancista dirigiu, A Mulher de Longe (1949). Foi papai quem me deu os livros do Lucio. Dele, eu li Maleita,Mãos vazias, Dias perdidos, A luz no subsolo, A professora Hilda, O desconhecido....Daí, pra passar à pintura... indo por Guignard, Inimá de Paula... foi um pulo, chegando finalmente à prosa de Guimarães Rosa. A música mineira barroca do sec. XVIII veio junto disso. Conheci Lucio no ano da publicação de sua obra prima, A Crônica da Casa Assassinada. O cinema de Humberto Mauro crismou o meu amor pelas Gerais. Minas é a minha segunda terra.Tenho uma ligação visceral, afetiva, por sua cultura, seu povo, e muitos amigos “guardados no lado esquerdo do peito”. 

Omelete: Há cerca de duas décadas, você mantém em Minas um trabalho de formação de novos talentos. Como tem sido essa experiência?

LacerdaEm Minas, nos últimos 20 anos, tenho me dedicado, através de Oficinas, à formação de jovens cineastas e tecnicos do audiovisual. Com eles venho organizando minhas equipes profissionais ou encaminhando-os para o mercado de trabalho, com promissores resultados. O diretor de fotografia de meus últimos longas e séries pra TV, Alisson Prodlik, é o melhor exemplo.A equipe de Introdução...é formada 90% por jovens oriundos desse trabalho de formação, seja através das mostras de Tiradentes e Ouro Preto, ou do Polo Audiovisual da Zona da Mata - cuja Fábrica do Futuro se dedica à formação dessa mão de obra artística e técnica, num projeto jamais visto no Brasil, porque é permanente e utiliza profissionais de Cinema nessa formação.Além de coproduzir longas filmados em Cataguases onde esses meninos/as se iniciam no mercado. Esses meninos sou eu mesmo - é através deles que eu reencontro aquele garoto que eu fui quando comecei minha carreira há mais de 50 anos. E com essa paixão que eles têm pelo Cinema eu alimento a minha, sempre garantindo a sua renovação e o seu desejo. 

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