Filmes

Entrevista

Olmo e a Gaivota | Petra Costa mostra o outro lado da gravidez em documentário sobre amor e teatro

Longa chega aos cinemas nesta quinta

03.11.2015, às 10H49.
Atualizada em 10.11.2016, ÀS 15H05

Chamar a diretora mineira Petra Costa de “musa do documentário brasileiro”, como o cinema nacional a define, é mais do que reconhecer a combinação de charme e beleza em seu semblante: é ressaltar a dimensão de deslumbre que ela alcança frente a olhos alheios com filmes como Olmo e a Gaivota, em cartaz a partir desta quinta-feira. Feito em codireção entre ela e a dinamarquesa Lea Glob, o longa-metragem arrancou suspiros, expressões do tipo “Que fofo!” e o troféu de melhor documentário do Festival do Rio 2015. Antes, o longa já havia conquistado o prêmio do Júri Jovem no Festival de Locarno, na Suíça, em agosto, e mais duas láureas no CPH:DOX, da Dinamarca, em novembro de 2014, antes da conclusão do projeto. O projeto é uma reflexão sobre as vicissitudes da vida a dois, ou, no caso, a quase três, pela chegada de um bebezinho, batizado na tela de Nino. 

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Seus pais são dois atores do Théâtre du Soleil: Olívia Corsini e Serge Nicolai. E a rotina apaixonada deles se rende à chegada do primeiro filho no momento de uma virada profissional para ambos: uma encenação de A Gaivota, de Tchekov, nos EUA. Como Olívia vai fazer, com seu barrigão em expansão e com os riscos de aborto gerados por um hematoma no útero? Essa é a investigação proposta pelo filme, coproduzido pelo ator americano Tim Robbins e pela Zentropa, lar de Lars von Trier.   

Dois anos atrás, Petra viu seu longa de estreia, Elena, virar um inesperado sucesso de bilheteria dentro dos parâmetros do cinema documental no Brasil: foram cerca de 50 mil pagantes prestigiar seu olhar sobre o suicídio de sua irmã. A julgar por seu bom desempenho no Festival do Rio e, mais recentemente, na 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, onde foi uma das atrações mais elogiadas no boca a boca popular, Olmo... promete também uma carreira de peso, por se configurar como uma história de amor, daquelas de arrancar suspiro. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao OMELETE, a cineasta analisa seu próprio estilo e suas buscas na direção:

Seu Olmo e a Gaivota é uma tríplice afirmação da vida. Afirma: a) A vida a dois, em casal; b) A vida a três, com um bebê que está pra chegar; c) a vida nos palcos, no matrimônio com a arte. Como é usar as ferramentas do documentário para fazer um “filme de amor” sobre o amor em tanta pluralidade?

PETRA COSTA - Acredito que a minha aproximação ao cinema é mais pelo questionamento do que pela afirmação. Minha busca não era de afirmar, mas adentrar essa seara de afetividades, do afeto de um casal, de um afeto dessa mãe com esse ser que cresce na sua barriga, falar da paixão de uma atriz pelo teatro. Enfim, era um modo de entender como se dava essa tríplice relação. Uma das perguntas centrais ao começar o filme era: “O quanto o nascimento de um filho não é também um luto, luto da mulher que existia até então?” A gravidez é quase sempre retratada como uma celebração, algo simples e natural. No entanto, hoje, a gravidez é uma escolha, e, portanto, um dilema. Nosso desejo era adentrar as profundezas desse dilema e a série de ondas que ele provoca. As ferramentas do documentário que usamos para isso foram, primeiramente, pedir à Olivia gravar um diário de voz desde o comecinho da gravidez registrando seus pensamentos mais íntimos sobre a transformação corporal e psíquica que ela observava em si mesma. Em segundo lugar, acompanhar e filmar Olivia e Serge mês a mês à medida que os 9 meses se desenrolavam. Isso gerou um rico material que nos orientou muito na montagem e nas constantes reescrituras do roteiro. No começo, Olivia tinha uma insegurança natural de ser mãe. Percebia uma agressividade, um “tigre e o dragão” que gritavam dentro dela, e se perguntava se conseguiria domá-los para ser uma “boa mãe”. Falava também do estranhamento que era sentir esse pequeno ser se manifestar dentro de si… quase como um alien. Depois que o bebê nasceu, todos esses questionamentos sumiram, para dar lugar a outros e a primeira vez que Olivia se escutou no filme seu impulso foi negar, querer censurar aquelas questões que já não existiam mais. Depois de um tempo ele se reconheceu. Mas o filme só foi possível por ter tido essas ferramentas do documentário que registraram as transformações enquanto elas aconteciam. A barriga, como um grande ponto de interrogação.

Como um casal adentra essa transformação, e também como é para um casal encenar a si mesmo?

PETRA  Essa era a segunda pergunta. Entre Olivia e Serge têm momentos de tensão que são normais para qualquer casal, mas eles conseguem ali gerar um equilíbrio. Como o Serge falou outro dia... logo que a Olivia ficou grávida, ele assumiu a posição de punching ball, de saco de pancadas. Ele sabia que não tinha muito outro lugar naquela equação e que o melhor que ele podia fazer era amortecer aquele excesso de hormônios que estavam explodindo. E Olivia sempre dizia “dizem que uma mulher espera um filho, mas é o pai quem espera, a mulher o cria, cria o fígado, os olhos, as mãos…”. Edmundo Desnoes [roteirista de um cult do cinema cubano Memórias do Subdesenvolvimento] quando viu o filme escreveu algo lindo sobre isso: “O abraço e a luta da terra sólida e o céu vazio. Ele viaja para pagar as contas; ela cresce dentro de uma gaiola dourada.” E na relação com a arte, o filme pra mim, de certa forma, é uma continuação de uma investigação que eu vinha tendo com Elena.

Como se dá essa continuidade?

PETRA - O Elena é um mergulho no rito de passagem da adolescência para a vida adulta, a dificuldade de um ser humano sentir que ele tem valor, que ele merece viver, que ele tem direito a ter voz, direito a se expressar. E esse desejo vai de encontro e contra uma enxurrada emocional e da própria sociedade que te leva na direção do afogamento, de acreditar eu não mereço, eu não devo, eu não posso. O desafio na transição da adolescência pra vida adulta, é sobreviver a essa enxurrada. Uma vez que essa voz é conquistada, e o seu pequeno ser começa a criar raízes e fala “aqui eu posso plantar minha plantinha, a minha árvore, e existir enquanto ser”. Em Olmo e a gaivota minha vontade é entender um segundo momento, um segundo rito de passagem, em que é necessário desapegar dessa identidade conquistada, criando condições para que um outro nasça, seja um bebê ou uma nova versão de si, enraizado como um “olmo” (nome de um tipo de árvore) ou alçando vôo como uma “gaivota”.

O que fica de mais inusitado no olhar de Olmo... sobre a gravidez?

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PETRA - Muitas pessoas falam “É... a gente nunca viu um retrato da gravidez assim". Eu falo “É, realmente”. A sociedade ocidental foca muito em como nessa narrativa... a centenária... de como deus criou o mundo em sete dias e pouco se fala de como mulher cria um ser em 9 meses. E essa é a criação palpável, real, que a gente observa enquanto humanidade e o quanto essa narrativa de Deus não é uma narrativa criada para tirar o poder da mulher, esse poder que a princípio pareceu misterioso… dizem que nos primórdios não se sabia que o homem inseminava a mulher. Parecia que a mulher tinha o dom da criação. A ensaísta Camille Paglia fala muito disso no livro dela, dessa narrativa de um deus mulher. Ela dominava a Terra e esse domínio da Terra era um domínio assustador para o homem. Então ele precisou criar o terreno dos céus pra poder equilibrar e conquistar um Poder. Um Poder que é criado somente pela narrativa. Aí claro, ainda existia a gravidez. A gravidez ainda era palpável. Então o mito de nossa senhora de certa forma abarca essa fertilidade, esse excesso de potência que é a gravidez da mulher, mas que é esvaziado de política, porque é uma gravidez sem sexo, sem medo, sem desejo e sem morte.

Como foi arquitetada a menage à trois entre o casal e a câmera, onde é encenação?

PETRA - Desde o princípio a ideia era ter um casal encenando a própria vida. Em certa medida é um filme sobre a encenação e a encenação está presente o tempo inteiro (pois eles estão conscientes da câmera) e ao mesmo tempo não está porque a vida é deles. Mas tem momentos em que, justamente com as nossas provocações, a gente vê ali alguns instantes nos quais a máscara cai. A gente chega em um lugar que eles não estavam prevendo no papel que eles queriam encenar sobre si mesmos. As perguntas que eu faço, que estão no filme, são perguntas que na vida também criam momentos em que a máscara cai. E era esse o interesse de trabalhar com atores também, porque eles são reflexos meio que aumentados de nós mesmos, das nossas vidas e o quanto estamos quase sempre encenando e criando papéis. Uma das primeiras cenas que a gente pensou em ter no filme era uma mulher olhar para o espelho, olhar pra cada ruga, para cada marca no seu rosto e tentar ver de que hábito, de que escolhas na vida surgiram aquelas marcas. Como ela fala “essa daqui é a ruga de Marion, que eu encenei noite a após noite e a tristeza dela ficou gravada na minha testa”. É um pouco como o romance O Retrato de Dorian Gray, mas um retrato de Dorian Gray que está em cada um de nós. E isso é um pouco a arqueologia do envelhecer que para uma atriz é ainda mais forte porque é o seu rosto, seu corpo é o seu instrumento de trabalho. Ela é mais consciente das marcas que ela deixou no seu próprio corpo e rosto a partir dessas escolhas conscientes e inconscientes que fazemos em vida.

De que maneira o seu cinema lida com os distanciamentos inerentes ao documentário? Onde você se distancia, onde você se expõe, onde você e o objeto são um só?

PETRA - O que me atrai no documentário é o muito do que me atrai na antropologia; que a princípio surge como um desejo de ter, criar um retrato objetivo do outro. Depois você percebe o quão colonialista é esse desejo. Quão opressor é esse desejo da objetividade... a crise da antropologia que aconteceu nos anos 1970 quando os antropólogos reconhecem que a coisa mais honesta que podem fazer é se colocarem enquanto antropólogos, evidenciar o seu ponto de vista e criar uma rachadura nesse retrato que parecia total. E pra mim, a minha aproximação com o cinema e com o documentário vem muito por esse viés da antropologia, por esse olhar. Até por isso que eu entrei em temas mais da intimidade, porque eram temas em que eu sabia, ficava claro que eu estava ali enquanto espectadora íntima daquele processo. Seja no meu curta-metragem Olhos de Ressaca, seja no Elena e agora nesse filme. Eu não tento e não quero fazer um retrato objetivo e distanciado. Eu sei que estou totalmente misturada com esse retrato e que ele é algo do meu ponto de vista, e a partir desse ponto de vista fissurado e incompleto. Então, nesse filme, eu e minha co-diretora Lea Glob quisemos nos colocar enquanto personagens, enquanto elementos perturbadores naquele apartamento porque nós éramos isso mesmo e ele existe graças a essa perturbação.

Aonde teatro e cinema se confundem e se completam em Olmo e a Gaivota?

PETRA - Quando estávamos fazendo o filme, havia questões que a gente via muito presente na vida do casal e nos próprios questionamentos da Olivia, que a gente começou a pensar como revelar isso no filme. Daí surgiu a ideia de trabalhar com a peça A Gaivota, do Tchekhov, que foi até uma sugestão da minha amiga Martha Kiss que não só me apresentou a Serge e Olivia mas também trabalhou no roteiro do filme.  É muito interessante que é uma peça que o Tchekhov escreve em resposta a Hamlet, de Shakespeare. É como uma reinterpretação de Hamlet, mas um Hamlet que não é o Hamlet seguro. O personagem Trepleff é um Hamlet inseguro, bobo… assim… e a Nina é uma Ofélia que vai se tornando mais forte. Então é um Hamlet mais fraco e uma Ofélia mais forte e… mas enfim, é uma peça que fala da questão do artista, da dificuldade de se acertar e de se afirmar enquanto artista na juventude. A Nina, nesse desejo de ser artista, de ser atriz, ela quase enlouquece e no final ela consegue... como sobreviver a esse desejos, medos com uma frase linda, “ quando eu penso no meu chamado, eu não tenho medo da vida”, o chamado da arte, de ser atriz.…E tem também a figura da Arkádina que é uma atriz já estabelecida que está entrando na decadência, perturbada pelo medo do envelhecer, e esses eram dois medos muito presentes na Olivia e também em qualquer atriz. Então, ela enclausurada nesse apartamento começa a ver tanto a Nina quanto a Arkádina como reflexos de si mesma. E na relação da Arkádina com Trigorin, a relação de um casal que tem que sobreviver ao tempo. Tem um momento que o Trigoren se apaixona pela Nina, ou seja, pela versão mais jovem da Arkádina. E isso é um medo que é discutido no filme num momento, quando a Olivia fala “ eu não sou mais uma jovem atriz e você pode se apaixonar por jovens atrizes”  e aí o Serge responde: “ é, mas você também pode se apaixonar por jovens atores” e ela fala “ ah, tomara!” Então a peça reflete tudo isso e ela vai além disso. O Tchekhov, é um dramaturgo revolucionário que cria esse teatro pós-dramático em que nada acontece aparentemente, mas tudo acontece dentro dos personagens e fora de cena.  E já existia esse desejo no filme antes trabalharmos com A Gaivota. Porque o filme surgiu numa ideia que seria um dia na vida de uma mulher em que nada de extraordinário acontece, porém ela é invadida pelo extraordinário em seus pensamentos, nos seus desejos, medos, anseios e memórias, e realmente muitas das coisas que acontecem no filme , elas acontecem fora de cena também, como o próprio nascimento do bebê. Então tem esse paralelo forte.

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