Filmes

Entrevista

Parceira de Martin Scorsese há 50 anos, Thelma Schoonmaker fala do ritmo e das cobranças do diretor

Montadora discute a polêmica envolvendo Silêncio e se diz empolgada para editar Robert De Niro e Joe Pesci em The Irishman

11.03.2017, às 13H00.
Atualizada em 11.03.2017, ÀS 14H56

Alvo de polêmicas por seu retrato hiperviolento para a experiência de catequizadores europeus no Japão do século XVII, onde o Cristianismo é bloqueado com brutalidade, Silêncio, lançado quinta-feira no Brasil, tornou-se um dos trabalhos mais controversos da carreira do diretor Martin Scorsese, sendo repudiado por alguns e tratado como obra-prima por outros.

Para uma das mais antigas colaboradoras do cineasta, Thelma Schoonmaker, montadora que editou 20 filmes feitos por ele de 1980 para cá, toda a tensão e toda divisão de opiniões em torno desta produção de US$ 40 milhões é fruto do fervor moral produzido pela imersão do filme na espiritualidade. Ela e o diretor são carne e osso há quase quatro décadas: foi Scorsese quem apresentou a Schoonmaker o amor de sua vida, o também cineasta Michael Powell (1905-1990), realizador do mítico Sapatinhos Vermelhos (1948), com quem ela foi casada por seis anos. Mas antes disso, em 1967, ela editou o primeiro longa-metragem de Marty (é como Hollywood chama o homem por trás de sucessos como O Lobo de Wall Street), quando ele era ainda um iniciante: Quem Bate à Minha Porta?. Isso contabiliza 50 anos de parceria, sobre a qual ela fala nesta entrevista exclusiva ao Omelete, dissecando a trama protagonizada por Andrew Garfield.   

Ele não apenas me apresentou meu finado marido, como abriu para mim as portas para filmografias do mundo todo, pois Marty é capaz de te falar sobre o filme mais obscuro do Cazaquistão da mesma maneira como fala de clássicos de Hollywood. Ele só não me dá tempo pra ver todos os filmes que eu gostaria, pois a jornada de trabalho com ele é de sete dias por semana, sem sair da ilha de edição desde o início da manhã até 7h da noite”, diz a montadora de 77 anos, ganhadora de três Oscars, conquistados por Touro Indomável (1980), O Aviador (2005) e Os Infiltrados (2006). 

Em Silêncio, que foi indicado ao Oscar de melhor fotografia, Garfield encarna o jesuíta Rodrigues. Ele vai para o Japão ao lado do colega de batina Garupe (Adam Driver) para resgatar o sacerdote que os formou, Padre Ferreira, papel confiado a Liam Neeson. Em solo japonês, Ferreira desapareceu, obrigado a cometer um gesto de apostasia: o ato de renegar seu credo sob o açoite de seus torturadores. Há lendas de que ele disse “Não!” a Cristo, assumiu uma identidade nipônica, casou-se e abraçou o título do filme pra si, “Silêncio”, como modo de viver sem causar alarde. O périplo dos jovens padres atrás dele ganha contornos de um épico intimista, como explica Schoonmaker:

Omelete: Diante de toda a polêmica provocada por Silêncio, como a senhora definiria a representação da fé apresentada por Scorsese?
Thelma Schoonmaker: Esse filme é guiado por uma discussão central: a História por vezes confundiu cristianismo com colonialismo. Por vezes, essa confusão foi válida. Muitas vezes, não. Existe uma dimensão colonizadora na chegada dos jesuítas a territórios que não conheciam a fé cristã, mas existe também uma missão de ordem transcendente que não passa pela esfera do Poder, mas sim do espírito. E vivemos uma época materialista, onde a espiritualidade não tem um lugar cômodo. Os fardos do cristianismo em relação ao trato com Deus é algo difícil de entender para quem não carrega essa experiência na pele. Mas que bom vermos nestes tempos materialistas um filme sobre o espírito. E, em relação a polêmicas... Ah! Você não faz ideia das polêmicas que vivemos com A Última Tentação de Cristo, quando fundamentalistas católicos questionaram a legitimidade de nosso filme. Ali sim foi dor de cabeça.

Omelete: Fé é um conceito recorrente nos filmes de Scorsese, sobretudo pela insistente utilização da metáfora do Cordeiro de Deus (ou seja, de alguém que se sacrifica em prol de uma causa ou do bem alheio) em seus filmes. Mas ele dirigiu três filmes que abordam a religião de forma explícita: A Última Tentação de Cristo (1988), Kundun (1997) Silêncio (2017)O quanto o olhar dele sobre religião mudou entre cada um desses longas? 
Thelma Schoonmaker: São filmes muito diferentes. Tentação é sobre a humanização de um mito, sobre o desmaio de Jesus na cruz e seu devaneio de levar uma vida real. Kundun é sobre o quanto o povo tibetano consegue se manter unido apesar de tudo o que enfrenta em termos de opressão política. E Silêncio é um panorama do Oeste chegando à Ásia, sobre crer ou não, sobre pagar o preço pela sua crença. Nesse tempo que separa cada um dos filmes, a visão de Marty sobre os dilemas entre matéria e espírito foi ficando mais consciente de que nenhuma certeza é absoluta. A meta dele é compartilhar dúvidas. Mas uma coisa, no trato comigo na montagem, não mudou: ele tem a consciência de que, na edição, a emoção de todos os personagens, não importa se estejam de lados opostos, precisam estar na tela. Quando eu edito uma cena, pela lógica dele, eu tenho que preservar a emoção do jesuíta vivido por Garfield mas também tenho que encaixar a emoção dos aldeões japoneses cristãos oprimidos pela aristocracia. E também tenho que apresentar os sentimentos desses aristocratas. O público não pode ser manipulado por um único sentimento. Ele precisa entender todos os lados de uma trama pelo lado emocional, sensorial...    

Omelete: A fotografia de Silêncio concorreu ao Oscar. Como é editar as imagens fotografadas por Rodrigo Prieto?
Thelma Schoonmaker: Existe um esplendor visual nelas, mas o que deve me guiar é o ritmo que rodeia esse esplendor. Marty queria um filme meditativo, uma atmosfera de contemplação, ou seja, nada de cortes rápidos. A lei era ralentar o máximo possível a narrativa. Valorizar os planos em que Prieto distendeu-se ao máximo.  

Omelete: Como funciona a prática do seu trabalho com Scorsese?
Thelma SchoonmakerA dinâmica é assim: ele filma, manda as cenas enquanto ainda está no set e eu vou montando um primeiro corte que é concebido para ser desfeito. Eu já monto com a certeza de que aquilo vai ser recriado. Porém, quanto mais sólido for este primeiro corte, quanto mais essa “versão” estiver próxima da maneira como Marty encara o mundo e o cinema, mais confiança ele terá em meu olhar, instigando-se a editar junto comigo novas versões, mais próximas do que foi encontrando nas filmagens. Marty sabe editar. E edita muito bem. Aliás, a parte do ofício do cinema que ele mais gosta é a ilha de edição, pois, ali, não tem mais a tensão do set, não tem ator com o qual ele precisa se preocupar, os cavalos nas imagens não são mais reais e não trotam do nada. Ali ele se alivia... e cria. Marty senta e monta comigo.

Omelete: Há quem diga que o cinema de Scorsese é um catálogo de referências: cada filme dele cita outros tantos. A senhora leva suas referências cinéfilas para a ilha?
Thelma Schoonmaker: Não, por respeito a ele. Claro que uma solução ou outra, que se inspira num filme antigo, por vezes me vem à cabeça. Mas os filmes são dele. Aquilo nasce do coração dele, sobretudo Silêncio, ao qual ele dedicou 28 anos de sua vida.

Omelete: Qual é a sua expectativa para The Irishman, o novo projeto de Scorsese, já adquirido pela NetFlix, a ser estrelado por Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci?
Thelma Schoonmaker: Eu nem li o roteiro ainda, mas já me bateu a empolgação de poder editar as improvisações de Pesci e De Niro. Eles são reis do improviso e fazem isso o tempo todo quando trabalham com Marty. E eu nunca tive a oportunidade de editar nada feito por Al Pacino, mas acredito que ele deve trabalhar de forma similar.

Omelete: Qual é a história mais comovente que viveu com Marty nos sets?
Thelma Schoonmaker: São tantas. Conheço esse homem desde 1967 e vivi alguns dos momentos profissionais mais importantes de sua trajetória nas telas. Mas tem uma história que sempre me comove. Apesar de todo seu talento e do prestígio que tem, Marty sempre fica nervoso quando tem que exibir um filme novo para um diretor que admira. Mostrar seu trabalho a seus mestres deixa ele cheio de medo de que alguém que ama rejeite seu filme. Quando terminou A Última Tentação de Cristo, ele me pediu pra que mostrássemos aquele longa-metragem para o meu finado marido, Powell, a quem ele amava muito. Fizemos a projeção e Marty passou o tempo todo colado na poltrona, em pânico. Quando as luzes se acenderam, Powell estava chorando e olhou para Marty com lágrimas de comoção nos olhos. Você não pode imaginar a expressão de felicidade que Marty fez, sentindo-se aceito, aprovado por seu mestre. Isso tem um nome: generosidade.

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